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Foto do escritorLeonardo Ramos

NEW AGE, parte II: Meditação, Música e Ciência

Atualizado: 21 de abr. de 2023





Na primeira parte dessa série, nós demonstramos que a música irlandesa não tem (praticamente) nada a ver com New Age, e tampouco com sua multiplicidade pós-moderna de ideais. Fica, pois, a dúvida: quer dizer que ouvir Enya não vai me “fazer” meditar? Não, não vai. Na verdade, sinto informar, nada vai te “fazer” meditar. Nem aquele aplicativo que você acabou de assinar por 1 ano para economizar no quociente mensal. Mas calma, antes de cancelar a compra e desistir completamente da música, leia essa segunda parte, e descubra o que o seu cérebro é capaz de fazer quando você deixa de terceirizar os seus estados mentais.


A verdade é que existe uma relação muito mais profunda e sólida entre meditação e música. Gosto de pensar que essa relação é muito especial na música irlandesa, e por isso esse artigo tratará de amarrar os dois assuntos da forma como tenho pesquisado, lido e ponderado pelos últimos anos – desde que comecei a praticar meditação do jeito “correto”, em paralelo aos meus estudos da Irish flute. No artigo passado, usei o termo “preconceito simbólico” para descrever um tipo de barreira psicológica que afasta as pessoas de certos elementos e práticas culturais por conta da associação que fazem com um repertório próprio de experiências e rótulos que não lhe aprazem. Tipo "não quero saber desse papo de gente que abraça árvore". Pois já aviso aos navegantes que podem ficar tranquilos, pois essa relação que descrevo entre música irlandesa e meditação dispensa todo o panteão de elfos da floresta, misticismo e magia que permeiam o imaginário (um tanto simplista) ao redor desses estilos.


01 FAIXA 01 - UM POUCO DE CIÊNCIA.mp3


Acho pertinente começar com um pouco de embasamento para o que eu gostaria de apresentar.


Arte produzida há pelo menos 6 mil anos pelo mesmíssimo cérebro que usamos hoje. Localizada no Parque Nacional Da Serra Da Capivara. Foto minha mesmo.

Você lembra de quando era pequeno, meio desajeitado, e tudo era MUITO interessante? É capaz que você não se lembre, porque nessa época (até mais ou menos os 6 anos de idade), o cérebro ainda não está tão preocupado com formar memórias muito sólidas. Mas não é por acaso que o cérebro das crianças pequenas funciona desse jeito: nós somos uma espécie que se apoia muito na nossa capacidade de nos adaptar ao meio, então é biologicamente vantajoso que nasçamos com uma mente-esponja, que absorve tudo e percebe tudo, e faz todo tipo de associação conceitual, sinestésica e emocional - por isso crianças são tão criativas também. Também é basicamente a primeira vez que vemos e experienciamos tudo – tudo é novo, e há pouco ou nada no nosso repertório para equiparar ao que está acontecendo e prever o que vai acontecer depois. Aliás, isso explica, além do fato de acharmos tudo muito fascinante (mesmo que já tenhamos visto determinada coisa inúmeras vezes), porque hoje em dia as crianças “nascem sabendo” usar iPad.


Mas a partir dos 6-7 anos de idade, o cérebro começa a operar uma mudança significativa na sua forma de perceber o mundo e processar a “realidade”: na vida adulta (e vale lembrar que a “vida adulta” na natureza chega bem antes do que na civilização ocidental contemporânea) nossa espécie tem que ser capaz de tomar decisões rápidas e se comunicar com facilidade e eficiência. Passa a ser muito mais importante criar uma rápida inferência do que está acontecendo, com base nos nossos registros internos de situações passadas, que inclusive nos permitem prever o que vai acontecer e facilitam na tomada de decisões. Por isso, a seleção natural favoreceu que desenvolvêssemos uma rede neural central conhecida como “Default Mode Network” (rede de modo padrão), que é responsável, entre tantas outras coisas, por criar modelos e previsões do mundo, e solidificar respostas-padrão mais focadas e pragmáticas para cada previsão. É muito difícil criar boas previsões do mundo quando mal conhecemos ele, mas, com a idade, fica cada vez mais fácil “sacar” o que está acontecendo e para onde as coisas vão caminhar, e assim tomar atitudes para garantir nossa sobrevivência. Ao lado disso, o Default Mode Network codifica tudo dando nome e sentido, para que a transmissão de conhecimento entre humanos seja especialmente eficiente - o que significa que o nosso cérebro é uma bela máquina de criar sentidos, e que nós somos capazes de aprender com os erros que nossos antepassados cometeram! Até aí, legal. Mas vamos lembrar que este cérebro foi formado para vivermos na natureza, caçando, fugindo de predadores, nos defendendo de bandos humanos concorrentes… o que acontece quando o ser humano, ainda com o mesmíssimo cérebro, se desloca da natureza para os centros urbanos e começa a viver até os 80-100 anos (mais do que o dobro da expectativa de vida que tínhamos na natureza)? Bom, nós vamos ficando cada vez mais eficientes nas nossas previsões e cada vez mais enrijecidos nos nossos padrões de comportamento e resposta automatizadas. Não é por acaso que o “Default Mode Network” é considerado o nosso “piloto automático”. É ele que faz a gente tomar o vagão de metrô errado porque estamos acostumados a virar para a direita ao entrar na estação e nem nos tocamos que, hoje, por acaso, entramos pelo outro lado e precisaríamos virar para a esquerda. E é ele que nos faz contar sempre as mesmas histórias e repetir as mesmas frases, achando que estamos sempre pensando algo novo. Faz parte das funções dessa rede neural nos manter como protagonistas da nossa própria história, e por conta disso muitas vezes vivemos a ilusão de que estamos sempre crescendo, nos desenvolvendo e nos tornando melhores - isso, ou então que somos grandes vítimas de algo, o que é bem desagradável de se sentir, mas pelo menos continua nos mantendo como protagonistas da história. Na verdade, o que acaba acontecendo é que começamos a viver cada vez mais dentro das nossas previsões – em outras palavras, começamos a viver cada vez mais no mundo interior que construimos para nós mesmos, vendo e vivendo aquilo que esperamos ver e viver (como diz nossa editora Paula Camacho, quem já se queimou com sopa, sopra até iogurte), e nos fechamos cada vez mais para as percepções exteriores. Uma criança de 4 anos dificilmente se entedia, porque tudo é novidade para ela. Mesmo a música do “baby shark” (eu tenho uma sobrinha de 3 anos), apesar de ENFADONHAMENTE REPETITIVA, continua sendo novidade para ela. Eu, por outro lado, já me sinto entediado se tiver que ir duas vezes na padaria da esquina no mesmo dia, porque o meu cérebro já conhece o caminho e não se dá o trabalho de “abrir as portas da percepção”, algo que gasta energia e vai contra o seu funcionamento biológico padrão. Lembrando que por “energia” eu quero dizer “gasto de ATP” (nada místico) - a lógica de qualquer organismo biológico é a de pesar os custos e benefícios de cada gasto de energia. Quer dizer, esse é o padrão – o que não significa que não podemos nos treinar para vencer o padrão.



Default Mode Network: é essa região vermelha no cérebro que pensa "eu".

Qual é o padrão do corpo humano? Quero dizer, se ficarmos sentados o dia todo na mesma posição, sem usar nossos músculos? A tendência vai ser os nossos músculos atrofiarem-se por não estarem sendo usados – o organismo não vai despender energia preciosa para manter tecidos de músculo que não são usados. É o que acontece com pessoas que ficam anos em coma: quando saem, seus músculos não respondem direito. Ainda assim, a (quase) qualquer momento, uma pessoa sedentária também pode reverter o “padrão” dos seus músculos se começar a treiná-los. Quando você começa a se exercitar, você está informando o seu cérebro de que a balança do custo-benefício virou e agora é vantajoso investir energia na manutenção e desenvolvimento dos músculos. Certo, e qual é o padrão da mente humana? É se acomodar do mesmo jeito que os músculos: vamos ficando cada vez mais automáticos, rígidos, repetitivos, reféns da "entropia" (tendência ao caos) que a mente tem. Mas por que não percebemos que estamos ficando acomodados? Por que é que mesmo a pessoa mais previsível e “cabeça fechada” continua se achando visionária? Por causa daquela outra função do “Default Mode Network”, que é contar a nossa história para nós mesmos. Ele tem uma função auto-biográfica, que começa pela distinção psicológica entre “eu” e “os outros”, passa pela formação da noção de tempo (passado, presente e futuro) e culmina na importância biológica de nos enxergarmos sempre como protagonistas da nossa própria história – isso é importante por um fato muito simples: quem não tinha esse funcionamento na natureza tinha menos chances de sobreviver e produzir descendentes. Não importa se a pessoa passou 10 anos da vida dela pensando exatamente a mesma coisa todos os dias: é bem possível que ela esteja convencida de que continua crescendo como ser humano e aprendendo coisas novas e se tornando uma pessoa cada vez mais sábia. Qual seria, então, a solução para esse problema (quer dizer, se você concordar comigo que se trata de um problema)? Em outras palavras, qual é a “academia” que o cérebro poderia fazer? A resposta, imagino, já deve estar muito bem formulada pelo seu próprio “Default Mode Network”, que já analisou as informações que eu trouxe até aqui e criou uma previsão bastante confiável: sim, é a meditação!





02 FAIXA 02 - TOQUE MÚSICA PORQUE É LEGAL TOCAR MÚSICA.mp3


Uma flauta de 35.000 anos.

Sabe, houve um tempo, na história da humanidade, em que arte e religião não tinham distinção. Na verdade, corrijo-me: houve um tempo em que arte e espiritualidade não eram distintas. E faço ainda mais uma ressalva: o termo “espiritualidade” me deixa um pouco reticente por que parece pressupor um “espírito”, uma palavra que na nossa cultura já evoca uma imagem de um “algo” que está localizado em algum lugar dentro do nosso saco de pele, cada um de nós detentores de um “espírito” – um “algo” de "outra natureza" que, quando morrermos, vai sair flutuando por aí em direção a alguma localização específica no céu ou no inferno ou no saco de pele de outra pessoa que estava só esperando este “ingrediente final” para poder nascer. Mas o intuito aqui não é dar crédito ou descrédito a crenças individuais que possamos ter. Então vamos começar parando de pensar em termos de imagens e em termos de “algos” – quem faz isso é o Default Mode Network, que dá um nome e atribui um significado tangível a tudo. Como espécie, nós temos muita dificuldade de lidar com instâncias não-conceituais da realidade (quase como se, para existir, tudo precisasse de um nome).



A arte tem o poder de nos extrair desse loop de conceitos, palavras e pensamentos, e parece que “eleva” a nossa mente para um funcionamento que “transcende” esse mundo comum, esse piloto automático. Ter uma forma de prever e codificar o mundo rapidamente pode ser evolutivamente bacana, mas tem o efeito colateral de criar barreiras psicológicas muito rígidas e nos fazer sentir fatalmente enclausurados e claustrofóbicos em nossas próprias narrativas. Brian Finnegan uma vez descreveu a experiência de tocar música como um um “soltar-se no prado”, sem paredes e sem teto, tendo apenas o aqui e agora, e um fluir eterno do momento presente. Deixar-se levar por essa experiência, estar nessa “zona”, é uma sensação indescritível justamente porque a parte do cérebro que se ocupa de criar descrições não está envolvida no processo. Nesse momento, o nosso Default Mode Network não está sendo tão usado e há OUTRAS conexões rolando no cérebro que dispensam nomes, palavras, conceitos e descrições; a gente até brinca de tentar descrever o que uma tune está "dizendo", mas no fundo no fundo sabemos que o que ela diz só pode ser dito daquela forma - do contrário, poderíamos facilmente substituir uma tune por uma palestra ou uma apresentação de PowerPoint e obteríamos exatamente o mesmo resultado. Ninguém iria querer tocar na session. O problema é que, no momento em que saímos da “zona” e retornamos ao nosso “eu padrão”, sentimos a necessidade de dar nome para essa experiência que é tão incrivelmente prazerosa, e daí surgem panteões e instituições que nada mais são do que complexas narrativas criadas pelo cérebro racional para se conformar com algo que não lhe compete entender. É para esse tipo de experiência “transcendental” que chama atenção o escritor Aldous Huxley, em seu livro “As Portas Da Percepção”:



“(…) devemos aprender a trabalhar com palavras efetivamente; mas, ao mesmo tempo, devemos preservar e, se necessário, intensificar nossa habilidade de olhar para o mundo diretamente, e não através do opaco meio dos conceitos, que distorce todo fato dado para encaixá-lo em rótulos familiares e genéricos, ou em abstrações explanatórias. (…) em vez de criarmos adultos bem desenvolvidos, criamos estudantes das ciências naturais que são completamente alheios à Natureza enquanto instância primordial da experiência, açoitamos o mundo com estudantes das humanidades que não sabem nada sobre humanidade, a própria ou a dos outros. (…) Em um mundo em que a educação é predominantemente verbal, pessoas altamente educadas acham quase impossível prestar a devida atenção em qualquer coisa que não sejam palavras e noções. Sempre há dinheiro para, sempre há doutorados sobre o que, para os acadêmicos, é a questão de importância-mor: quem influenciou quem para dizer o que, e quando? Mesmo nesta era da tecnologia, as humanidades verbais são honradas. As humanidades não-verbais, a arte de estar-se diretamente consciente dos fatos da existência, são quase completamente ignoradas.”


Já que estamos falando de suavizar um pouco o nosso apego a termos, nomes e conceitos: esse tal de Default Mode Network a que eu me refiro é um conceito científico que descreve (com base em extensas investigações, testes e revisões) um funcionamento do cérebro humano que já era razoavelmente conhecido em outros círculos antes da neurociência se ocupar do assunto, e já recebeu outras denominações. Algumas culturas orientais, por exemplo, chamam esse modo de funcionamento de “ego”. Ego não necessariamente é uma coisa ruim. Ele é o conjunto da nossa auto-biografia, dos sentidos e significados que damos às coisas, da nossa identidade, das nossas opiniões, de tudo em nós que diz “eu” e por isso pressupõe “outro”. Pare para pensar um instante: quem está pensando? Onde está localizado esse tal de "eu", que pensa? Insista um pouco nesse tipo de questionamento e você talvez tenha a sensação de que ele faz tanto sentido quanto perguntar qual é a cor favorita do número 5.


A interface da sua máquina não é a totalidade dos seus potenciais.

O ego é o nosso personagem. Todos nós precisamos de um personagem, porque ele funciona como interface para interagirmos com os outros seres humanos – da mesma forma como fica muito mais fácil interagir com um computador se ele tem um sistema operacional como o Windows. Mas o computador não se resume ao Windows. Na verdade, quando o computador trava, muitas vezes o problema é do Windows e não do computador. Da mesma forma, quando temos crises de ansiedade, por exemplo, muitas vezes o problema é do software, não do hardware. Se confundirmos um problema de software com um de hardware, corremos o risco de jogar fora um aparelho valioso só porque o Adobe Reader está desatualizado. O problema não é termos um personagem – o problema é levarmos ele tão a sério que reduzimos toda a realidade a esse cosplay que fazemos de nós mesmos, e começarmos a nos desesperar por causa dos problemas dos nossos personagens. Imagina se todo ator que interpretasse Othello fizesse isso!


Assim sendo, se o ego é APENAS uma das muitas funções que o cérebro desempenha, não é apenas prazeroso mas também saudável que coloquemos ele no seu devido lugar e nos permitamos experiências que o “transcendam”. Isso também não é conhecimento novo. Lembra que eu falei que arte e espiritualidade já foram uma coisa só? Pois. Espiritualidade, dispensando a imagem do espírito fisicamente localizado dentro do nosso saco de pele, são práticas que a humanidade desenvolve há milênios para poder contemplar “o que mais há” além de pensar em nós mesmos e dar nome para as coisas. Diversas atividades foram desenvolvidas que nos colocam em contato com esse “restante” do nosso cérebro, e algumas foram canonizadas e receberam distintivos sagrados – enquanto outras não receberam nenhum louro e nenhum castelo, mas seguiram existindo dentro de pubs, por exemplo. Recentemente joguei essa provocação em uma entrevista com o músico Caio Gregory, que além de tocar música irlandesa também pratica uma vertente do hinduismo – perguntei-lhe se ele achava que uma Irish session tem alguma relação com uma roda de meditação com mantras. Sua resposta foi:


De fato, as rodas de música (seja uma session, roda de samba, sankirtana ou o que for) são uma egrégora espontânea unida com o objetivo de florescer em arte e boas vibrações. Os indígenas Guarani Mbya, por exemplo, com quem convivo nos últimos 15 anos, fazem suas orações cantando cânticos, ou mborai. Os cristãos tem o livro dos salmos, onde se enfatiza o cantar como forma direta de se adereçar a Deus. Recentemente, passei a me aproximar do Movimento Hare Krishna, onde encontrei minha fé da forma que toca mais profundamente meu coração.


Para entender melhor esse momento transcendental proporcionado pelo fazer artístico, vamos dar um descanso para a neurociência e buscar termos e conceitos parecidos em outra área do conhecimento igualmente fascinante. O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, em seu livro “Flow: The Psychology Of Optimal Experience” escreveu que “centenas de vezes por dia somos lembrados da vulnerabilidade dos nossos eus. E, toda vez que isso acontece, energia psíquica é perdida tentando restaurar ordem para a consciência. Mas no flow não existe espaço para auto-escrutínio.” Por “flow” ele refere-se àquele momento em que estamos “na zona”, em que esquecemos momentaneamente de pensar em nós mesmos e muitas vezes perdemos até a noção do tempo, e ficamos perfeitamente absorvidos por uma atividade. Nesse momento, [...] a perda de auto-consciência não envolve uma perda do eu, e certamente tampouco da consciência, mas sim uma perda de consciência do eu. O que desliza para debaixo do limiar da consciência é o conceito de eu, a informação que usamos para representar para nós mesmos quem somos. E poder esquecer temporariamente quem somos parece ser bastante prazeroso. Quando não estamos preocupados com nós mesmos, temos realmente a chance de expandir o conceito de quem somos. Perda de auto-consciência pode levar a auto-transcendência, para um sentimento de que as fronteiras do nosso ser foram expandidas. [...] Quando uma pessoa investe toda a sua energia psíquica numa interação – seja com outra pessoa, com um barco, uma montanha ou uma peça musical – ela efetivamente se torna parte de um sistema de ações maior do que o ‘eu individual’ era antes”.


Isso tudo significa o seguinte, em bom português: quando conseguimos parar de pensar em nós mesmos, nem que seja por alguns instantes, nós temos uma experiência assaz libertadora que nos lembra, de uma forma que não conseguimos descrever, que o mundo é muito maior e muito mais rico do que o nosso auto-biógrafo interno é capaz de colocar em palavras. Esse efeito psicológico pode, sim, ser produzido por uma roda de orações, de mantras, de cânticos sagrados – e como não, ele também é produzido por uma roda de tunes! A única diferença é o nome e o valor simbólico-cultural que damos para cada, de acordo com o ponto de vista do nosso próprio ego. Mas, no frigir desses ovos, o ego não necessariamente está lá para que seu ponto de vista seja assim tão relevante. E vou lhes dizer uma coisa muito séria, meus amigos: arte e ego, portanto, não combinam.



Ouçam também o mestre Martin Hayes, fiddler do The Gloaming, no video acima, falando sobre como a atividade de tocar requer um mergulho profundo, pois a "música está trancada em uma parte maior e mais profunda que as minhas pequenas necessidades. [...] A música não é sobre mim, a música é o sentimento que você experiencia." E ele continua, dizendo que espiritualidade e música são inseparáveis na sua visão: "o esforço que eu coloco na música não está no arco ou no finger board, mas na minha vida cotidiana, como eu vejo a vida."


Quando você for sentar para tocar seu instrumento, deixe seu ego do lado de fora da porta, e você verá que a sua arte vai sair muito mais bonita. Isso porque, quando você consegue se permitir parar de pensar em si mesmo (na sua aparência quando está tocando, nos erros que você está cometendo, nas pessoas que estão te assistindo e te julgando, na porção de fritas que você pediu e está demorando muito para chegar, no técnico de som que está arruinando a sua performance) você libera uma quantidade surpreendente de energia psíquica que é investida naquilo que há de mais importante no momento: a sua arte. Contra-intuitivamente, isso não requer NENHUM esforço. É dessas coisas que fazer esforço para conseguir não faz diferença alguma. Tipo um orgasmo: se você pensa muito sobre ele, ele vai embora. Se você gosta daquilo que está fazendo, tudo o que você precisa é se permitir aproveitar o que está fazendo naquele momento. Fazer, pois, não pelo que os outros vão pensar de você, ou pelos distintivos que você vai poder carregar por aí (“uau, como ele toca rápido!” – “uau, que idéias musicais complexas!”), mas pelo prazer intrínseco daquilo que você está fazendo. Aliás, isso não só vai garantir que você toque uma música mais bonita, como também que você crie uma relação mais saudável com a música, que vai durar mais tempo e vai dar frutos melhores! Torno a lembrar que quando falo em “energia psíquica”, não estou querendo me referir a nenhuma conotação mística do termo “energia”.

Talvez uma forma fácil de visualizar o que estou dizendo seja a seguinte: lembra daquele cérebro que você usava até mais ou menos os 6 anos de idade, antes de o seu Default Mode Network começar a reinar mais? Ele ainda está aí, intacto, como aquele Lego que você montou e guardou no fundo do armário dos seus pais, sem tirar nenhuma pecinha do lugar. E você é capaz de acessá-lo! A maioria das pessoas passa o resto da vida sem fazer isso, porque é muito mais cômodo só se deixar levar na inércia do piloto automático, o ego. Mas se você, por meio de alguma prática, consegue se treinar a deixar esse ego de lado um instantinho, você vai ver que ainda é capaz de fazer conexões bem criativas, bem fora-da-caixinha. A arte não é só uma oportunidade para deixar a criança interior falar: ela é um caminho para isso! E como o nosso cérebro funciona por meio de conexões neurais que se associam em “caminhos”, é bem possível que, quando você estiver “na zona” tocando a sua música, você tenha sutis relances de emoções e sensações que você não tinha há muitos e muitos anos, que te lembram… a sua infância! Está tudo aí dentro! Tudo o que você já sentiu e já pensou e já criou, e todo o potencial que você tem de criar e fazer novas associações inusitadas está dentro do seu cérebro. Você só precisa se permitir acessar essas regiões.


Uma vez o Danny Littwin me contou uma história de uma pessoa que chegou numa session tocando uma tune muito rápido - muito mais do que ela era capaz, inclusive. Um músico virou para essa pessoa e perguntou "você não gosta dessa tune?", ao que ela respondeu que gostava sim. E o músico falou "então por que está com tanta pressa para chegar ao fim dela?" Uma tune há de ser tocada sempre com o mínimo esforço: ela deve fluir naturalmente. Mas, para tanto, é necessário praticar, independentemente se o intuito é tocar rápido ou lento. Por um lado, é bom lembrar que “tocar rápido” não é “tocar com pressa” – uma tune rápida tem a mesma leveza de uma lenta. Por outro lado, tocar uma melodia lenta é tão difícil quanto, senão mais! Acho que um bom exemplo disso está nessa faixa do Hunger Of The Skin, que mostra a quantidade de sutilezas para se sustentar em uma tune lenta, e a leveza que uma rápida pede:




O intuito, então, não é chegar na session, ou num show, se açoitando mentalmente para tocar mais rápido ou com menos erros: é tocar da forma como você sabe, de acordo com aquilo que a sua prática te fez, e, portanto, confiando que o seu corpo dá conta do recado. Agora, se permitir deixar levar por uma atividade, sem pensar em si naquele momento, não é necessariamente algo trivial para quem tem pouca prática – da mesma forma como andar não requer esforço, mas não é nada trivial para quem nunca treinou os músculos da perna. Requer prática porque o cérebro tem a tendência (que é evolutivamente importante para a espécie) de tomar os caminhos mais curtos de conexões neurais – o que, em geral, significa usar o piloto automático, que já tem uma coleção de previsões e modelos de realidade prontos, e várias decisões pré-tomadas para cada uma delas. Ajuda a sobreviver na natureza, de fato, mas te torna uma pessoa muito previsível e que se entedia com muita facilidade se você vive numa civilização como a nossa. Você percebe que, cada vez mais, vive dentro da realidade que a sua cabeça construiu e não pára mais para ouvir o que está acontecendo.

Por isso, precisamos começar... ouvindo!


Mas isso fica para semana que vem.

Não percam a eletrizante parte dois da parte dois dessa série sobre New Age, música irlandesa e meditação.

Na próxima sexta.

Neste mesmo horário.

Neste mesmo canal.




Leia AQUI a terceira parte desta série.






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1 Comment


Leonardo Ramos
Leonardo Ramos
Feb 21, 2022

Isso é um comentário de teste.

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