Na semana passada, publicamos a segunda parte desta série "New Age", que era um preâmbulo científico e artístico para entendermos melhor o tema de hoje: Como Meditar Com Música Irlandesa Sem Precisar De Poderes Mágicos. Mas agora, chega de delongas!
03 FAIXA 03 - TIRANDO O EGO DA EQUAÇÃO
Quando você chegar numa session, a primeira coisa que você deve fazer é ouvir. Ouvir sem julgar, sem começar a pensar no que você vai acrescentar ou no que você mudaria daquilo. Só ouça. Da mesma forma como, quando você queria começar a tocar música e não sabia por onde começar, você só ouviu e contemplou as gravações e shows que encontrou.
E então, quando uma tune que você toca for puxada, a primeira coisa que você deve fazer é… ouvir! Ouça um ciclo inteiro (AA-BB-CC), se for necessário. Não tenha pressa de mostrar que você também toca. Aquele momento não é sobre cada músico individual: todos lá estão a serviço desse algo maior que é a música. Por isso, é necessário ouvir para saber não só aquilo que o seu Default Mode Network consegue prever (“ah, é essa tune, eu sei ela”), mas também aquilo que ele não tem como prever: como que aquela tune está sendo tocada nesse momento? Qual a levada que esses músicos estão imprimindo? Será que alguma parte da tune ficou omitida? Será que eles tocam uma versão diferente da que eu conheço? Enfim, há uma porção de minúcias que a gente pega quando ouve com calma, coisas do momento, que são únicas àquela iteração particular daquela tune. Pode não parecer, mas esse momento, antes mesmo de você pegar o seu instrumento, já é um momento meditativo. A meditação começa ouvindo, não tirando conclusões precipitadas, e não se envolvendo com nada de imediato. É um exercício de contemplação – de não sair tirando conclusões e tomando providências a partir daquilo que você acha que sabe que vai acontecer.
E então, só então, você começa a tocar. E você vai fazer isso de tal maneira que o seu instrumento não se projete acima de nenhum dos outros. Você não vai fazer um solo, não vai alterar o ritmo e nem desviar a melodia muito – a não ser que você já domine a arte das variações, que na música irlandesa é uma ciência à parte, com o intuito de criar e improvisar sem perder jamais a unidade que é própria daquele caminho melódico. Essa tune vai ser repetida 3, 4, às vezes 5 ou 6 vezes – dependendo, a pessoa que puxou o set pode insistir nessa repetição enquanto esse "fluir musical estiver cumprindo o seu sentido próprio" (nas palavras do nosso editor Gustavo Lobão). Que sentido é esse? Então, isso você só tem como entender estando lá, naquele momento, falando aquela língua. E nem é tão-somente a pessoa que puxou o set que julga completamente o sentido e direção do set - pode acontecer de, por sentir que uma tune já não esteja mais cumprindo seu sentido, alguns músicos parem de tocá-la lá pelas tantas, de uma certa forma conduzindo também o set. Ninguém, realmente, está lá julgando o set, pois, no fim das contas, quem julga é o ego. Em dado momento, pode lhe ocorrer que uma tune nada mais é do que um mantra: um motivo sonoro cíclico que é repetido de uma maneira quase hipnótica. Quase – mas não exatamente. Porque uma prática meditativa NÃO significa entrar em transe, incorporar um espírito mágico, etc. Pelo contrário, meditar significa estar perfeitamente acordado, lúcido e presente. Não tem absolutamente nada de sobrenatural, oculto, místico nisso. O comunicador Alan Watts, em uma de suas famosas palestras, relata que em práticas meditativas coletivas em monastérios budistas, um mestre fica sempre atento ao estado de seus aprendizes, e, se algum deles pegar no sono ou entrar em transe, ele pode ser prontamente acordado com uma varetada – uma forma bastante suis generis de trazer o indivíduo de volta ao momento presente. Pois aí está: lá pelas tantas, a pessoa que puxou aquela tune vai puxar uma próxima dentro do mesmo set, e todos os músicos têm que estar atentos a isso para não continuarem a tocar a tune errada no momento errado. Ah, mas então quer dizer que essa pessoa estava pensando no futuro, não? Ela estava decidindo que tune ia puxar em seguida, não? E os harmonistas, aliás, que têm que estar constantemente decidindo os acordes que vão fazer em seguida? Isso não é se ocupar do futuro, não é sair do momento presente? Bem, não. É se ocupar daquilo que você está fazendo agora. É bem possível, inclusive, que essa pessoa que puxou as tunes já tenha o set pronto na cabeça – ou já tenha tanta prática de transitar entre tunes que ela não precisa necessariamente “pensar”, no sentido objetivo-conceitual. Pois não pense! Toque! Ao mesmo tempo, na session, todos estão presentes com as tunes que estão sendo tocadas, e com os outros músicos que estão tocando. Não pare para pensar sobre isso, não tire uma selfie mental desse momento. Só esteja no momento. Não há uso de palavras entre os músicos, mas há muita comunicação não-verbal: você pode estar tocando e se entendendo muito bem com um japonês, um alemão, um argentino e um marciano. Da mesma forma, não fique conversando consigo mesmo, crie essa comunicação não-verbal com você mesmo, e pratique isso de forma a ficar tão natural quanto tocar uma tune sem planejar cada próxima nota que você vai tocar. Tudo isso são formas de você usar seu cérebro que dispensam o “opaco meio dos conceitos”, o funcionamento do ego. Incidentalmente, sabe que nome o Huxley deu para esse funcionamento do cérebro, que ele também descreve n’As Portas Da Percepção? Ele chamou de “válvula redutora”.
E então, o set vai acabar, e você de repente vai se dar conta de onde está e de quem é, e de há outras pessoas em volta de você, e de que aquela porção de fritas até agora não chegou.
04 FAIXA 04 - COMO PRATICAR MÚSICA E MEDITAÇÃO.mp3
Mas então, como fazer para, mesmo depois do set finalizado, não ficarmos ansiosos com a chegada das fritas? Pois no momento em que o ego retorna ao comando, ele vai tornar a se ocupar do passado e do futuro e dos problemas que os nossos personagens acham que têm.
Muito bem. Até agora sabemos que um evento como uma session pode servir de estímulo para, literalmente, organizar a nossa consciência em torno de uma atividade e promover um momento de desconexão do próprio ego, o que é bastante prazeroso e libertador. A questão é: como não ficar refém desses momentos em que os estímulos externos organizam a nossa mente para nós? A resposta, meus amigos, pode soar um pouco desconfortável a princípio: prática solo. Desconfortável porque uma das coisas mais terríveis para o nosso ego é ter de encarar aquilo que ele não sabe. Antes, é ter de admitir para si próprio que ele não sabe algo. E a verdade é que, muitas vezes, pode ser mais fácil tocar uma tune acompanhado por um monte de músicos em uníssono do que sustentá-la solo. Em um artigo anterior que escrevi, relatei uma filosofia que o grande flautista Matt Molloy defende: o estado máximo da arte da música irlandesa, pelo menos de acordo com a tradição, é tocar solo. Só o seu instrumento melódico, sem acompanhamento. Existem incontáveis tunes pelo mundo, e a arte está justamente em tornar cada tune sua, tocando aquela melodia do seu jeito – não do jeito que você ouviu alguém tocar, mas imprimindo a sua própria marca pessoal naquela tune. Se ficar bom, ruim ou indiferente, isso não importa: pelo menos é você. Vou, então, insistir na metáfora: a arte de se viver, caro leitor, é saber tocar a própria melodia de maneira solo, independentemente de quem está tocando com você. Claro que pode ser, por vezes, muito emocionante estar bem acompanhado – mas isso não pode determinar o que a sua consciência faz. Por isso, músicos praticam sozinhos. Por isso, praticamos meditação sozinhos. De maneira que a prática se torna tal que, quando saímos dela, o resto das nossas atividades se desenvolvem com tanta naturalidade que é como se tivéssemos, magicamente, dado um “salto de nível”. Isso significa, por um lado, que quando praticamos bastante uma tune com um metrônomo lento, depois estaremos tocando ela rápido com muito mais leveza e desenvoltura. Por outro lado, isso remete a uma frase que o psicólogo de Harvard Richard Alpert (melhor conhecido como Ram Dass) escreveu em seu famoso livro “Be Here Now”, valendo-se de uma terminologia hindu: “no começo, você ‘faz’ sadhana (trabalho no seu caminho espiritual) dentro de limites bem determinados de espaço e tempo, como por exemplo ir à igreja nos domingos, entorpecer-se nos sábados à noite ou meditar todas as manhãs. Eventualmente, ocorre que sadhana é tudo o que você faz”. No que diz respeito à meditação, isso significa que, quando adquirimos uma certa prática, somos capazes de viver todos os momentos da nossa vida como se fossem um grande “flow”, como se estivéssemos constantemente “na zona”, capazes de não nos importar com paranóias egóicas – capazes, inclusive, de escolher não ficarmos ansiosos. Tudo isso sem esforço! Mas, para fazer isso sem esforço, torno a dizer, precisamos de prática. Então vamos a ela.
Para começo de conversa, meditação não é um estado de espírito místico que recai sobre nós, vindo do além. Meditar não é fugir deste plano de existência para outro. Não é ter um estado de consciência superhumano. Digo isso porque, quando eu comecei a buscar a meditação, anos atrás, eu não fazia idéia do que isso era e não entendia a literatura disponível sobre isso – toda ela salpicada de metáforas que o meu cérebro viciado em conceitos teimava em interpretar literalmente. O monge tibetano Tenzin Wangyal Rinpoche diz que a mente ocidental exige demais das metáforas que encontra pela frente (daqui a pouco vai ter gente usando um voltímetro para medir o “aumento de vibrações energéticas” de uma meditação). Eu meio que acreditei literal e cegamente no que li sobre, que nem se faz num culto religioso moderno. Então eu botava lá uma Enya pra ouvir e ficava me imaginando numa floresta encantada sendo abençoado pela deusa natureza. E acabava fatalmente frustrado porque nenhuma revelação de paz e espiritualidade recaía sobre mim. E ficava pensando: a única forma de eu atingir essa paz interior seria se eu morasse com os elfos naquela floresta – mas como eu morava em São Paulo, não tinha muito jeito. E foi aí que eu esbarrei nos dois primeiros problemas na minha jornada: expectativa e terceirização. Eu não estava usando a música como uma ferramenta meditativa, eu estava usando ela para terceirizar a paz interior que eu, sozinho, não conseguia alcançar. Que nem quando tocamos uma tune no meio de um monte de músicos, e não conseguimos escutar direito o que estamos fazendo, então é mais fácil acreditarmos que estamos tocando tudo certinho. A música estava organizando a minha consciência para mim. E ainda por cima eu me frustrava porque havia colocado sobre essa experiência uma expectativa irreal, de que a meditação, essa entidade mística, viria de fora para dentro e resolveria os meus problemas para mim, como se fosse um paracetamol.
Depois de muitas cabeçadas, eu finalmente decidi desligar a Enya e comecei a meditar em silêncio, porque meditação é, essencialmente, estar no momento presente sem outro objetivo ou expectativa além disso. Certo? Só que a minha cabeça não estava em silêncio. Quando eu desligava aquela música, eu ouvia um barulho ensurdecedor dentro da minha cabeça, que até então estava mascarado pelos estímulos externos: tudo o que eu tinha ficado de fazer e esqueci, os ridículos que eu passei na última semana, idéias novas que eu precisava anotar depressa para não esquecer, aquele áudio de whatsapp que eu fiquei de ouvir e responder, será que acabou o papel higiênico? E aí a prática, de fato, começou. Porque sim, a meditação é uma prática, como ir à academia é uma prática para os músculos. No caso, trata-se de uma prática para a mente, para que o cérebro se torne cada vez mais capaz de se organizar sozinho da forma como quiser. Essa prática é, em linhas bem gerais, uma prática de foco. Em que você quer focar? Na tune que você está tocando, ou na voz interior que está te lembrando dos seus erros e te pintando uma imagem de um eu passando ridículo em público? Muitas vezes, temos a sensação que não temos controle sobre onde a nossa mente vai focar. Mas isso é como dizer que não temos controle sobre as nossas pernas para parar de pé, se nunca treinamos seus músculos. Flautistas que tocam ao vivo, tenho certeza, já tiveram aquele momento de perceberem sua respiração tensa, desregulada, encurtada, dificultando bastante o tocar da flauta - o que pede um momento para limpar a cabeça, centrar a atenção no presente e observar a própria respiração.
Como praticar o foco no aqui e agora? Há diversas maneiras de se fazer isso. Muitas tradições e filosofias desenvolvidas pelos humanos ao longo de milênios oferecem receitas próprias para isso. Da mesma forma como existem incontáveis formas de se praticar música. Qual é a melhor? Só você vai poder decidir. Para começar, você pode tentar o básico que mais se ensina por aí: sente-se, primeiro, ou numa cadeira ou de pernas cruzadas. O motivo das pernas cruzadas em posição de lótus, que requer algum grau de alongamento para não ser desconfortável, não é porque é uma “posição mágica”: é porque isso permite que a coluna fique reta e evita fadiga na lombar – meditação também não é uma prova de resistência física. Mas você pode sentar numa cadeira, ou com as costas apoiadas numa parede ou numa árvore. É possível meditar deitado também, ou andando. Saca: não tem posição específica que nos permite estar mais ou menos presentes, então só fique confortável. Uma vez na sua posição de escolha, feche os olhos para evitar se distrair com o mundo exterior e… ouça! Faça que nem no começo da session e repare no que a sua mente e o seu corpo estão fazendo. E não julgue e nem tome providências sobre isso. Isso soa bastante simples, mas no frigir dis ovos acaba não sendo tão trivial para quem está começando. Um truque interessante que eu ouvi uma vez, para ajudar nesse começo, é de um professor que falava para seus alunos fecharem os olhos e prestarem atenção no som que ele estava prestes a tocar, que era muito sutil: e ele nunca tocava o som, mas produzia nos alunos aquele estado de atenção que queria - todos eles concentrados, esperando ouvir algo que seria muito sutil. Aos poucos, como uma poça de água que é deixada em paz, a sua mente vai começando a se aquietar, e daí comece a prestar atenção na sua respiração – sem se forçar e sem ficar se cobrando disso, até para evitar um burnout fácil. Periodicamente, e ainda mais se você estiver começando, a sua mente vai se distrair e começar a pensar desenfreadamente, se lembrar de várias coisas, ter várias idéias e descobrir mil motivos pelos quais você deveria parar com essa brincadeira e ir fazer outra coisa. Quando isso acontecer – e toda vez que isso acontecer – torne a prestar atenção na sua respiração assim que você se tocar que se distraiu. Isso pode ser frustrante a princípio. E essa é uma frustração muito parecida com a que sentimos quando estamos começando a tocar um instrumento novo. E vou dizer, há poucas coisas tão frustrantes nesse mundo quanto um instrumento musical novo. Mas para fazer música com um instrumento novo, não podemos desistir na primeira frustração. Nesse momento, a sua mente é aquele violão que você aprendeu a tocar apenas os acordes de Wonderwall, e você vai ter que encarar o fato de que tudo o que você sabe é o automatismo daquela sequência específica de posições da mão, e vai ter que meio que aprender a tocar do zero. Só continue, consistente e resolutamente, sem se açoitar. Aos poucos, e ao longo das suas práticas (não vai ser na primeira semana), a mente vai ficando cada vez menos turbulenta, e você eventualmente vai sentir a experiência de não estar pensando absolutamente nada. É claro que, na hora que você se tocar disso, você corre o risco de perder esse estado por pensar “nossa, eu não estou pensando”. Mas aí que está a prática: é a prática de se desapegar dos seus pensamentos e retornar a sua atenção para um único ponto de foco. Já aviso: não tem ponto de chegada, você não está indo em direção a lugar nenhum, você não tem objetivo nenhum e você não está fazendo absolutamente nada. Tudo isso são coisas da natureza de funcionamento do ego, e, dada uma boa prática, você vai começar a ver esse ego de fora para dentro e não precisar se apoiar mais tanto nos parâmetros dele – o que também pode parecer meio desconfortável porque o ego não entende muito bem coisas como “não ter um objetivo”.
Você também pode focar em cheiros que vêm e vão ou em ruídos ambientes, por exemplo, mas usa-se bastante a respiração porque ela é controlada pelo seu cérebro e acontece independentemente da sua vontade. A meditação não é, então, um ato específico, e sim a flexibilidade mental que desenvolvemos por meio da prática resoluta e consistente deste ato de sempre retornar a atenção ao presente. Por isso, qualquer coisa que você faça de forma resoluta e consistente pode acabar sendo, de uma certa maneira, um ato meditativo. Você pode, por exemplo, recitar um mantra repetidas vezes. Ou você pode tocar uma tune.
Coloque um metrônomo. 60 bpm, para começar, ou até menos. Toque um jig. O jogo é: se você ouvir o metrônomo, você está fora do tempo – a idéia é não ouvir o beat, porque você vai estar tocando exatamente sobre ele. Isso requer muita atenção e foco no momento presente. E repita essa tune 10, 15, 30 vezes. E então desligue o metrônomo e toque a tune naturalmente, na velocidade que for confortável para você. A sensação vai ser de muita leveza e facilidade. Que é mais ou menos como nos sentimos quando nos levantamos de uma sessão de prática meditativa e continuamos a tocar nossa vida: parece que fica mais fácil não se irritar com as coisas, não levar as coisas para o pessoal, não ficar ansioso ou estressado, se conformar que as coisas são assim e pronto.
FAIXA BÔNUS - O SILÊNCIO.mp3
Qual é o ponto da meditação? Qual é o objetivo da música? Bom, já vimos que o objetivo não é ser notado por isso. O objetivo da música, se é que há um, é o de tocar pelo prazer de tocar. Assim sendo, o ponto da meditação é não ter objetivo. Saca? Quem atribui objetivo para as coisas, de novo, é o ego. Tirando o ego da equação, o que sobra é fazer pelo valor intrínseco do que se faz. Meditar pela meditação. Os efeitos benéficos da meditação e da arte não podem ser o objetivo delas, porque, se forem, imediatamente caímos numa contradição que nos impedirá, fatalmente, de chegar lá. Na verdade, só falar sobre isso já é contraditório, porque, dispensado o ego, não há nenhum lugar para chegar e ninguém para chegar em lugar algum. Mas esse texto está sendo escrito por um ego, e ele só tem essas palavras desajeitadas para descrever algo que foge do seu domínio. Essa é mais ou menos aquela lógica da filosofia de que deve-se fazer um trabalho por amor a esse trabalho, e o dinheiro vem como consequência. Se trabalharmos com o dinheiro como objetivo tudo vai ser mais difícil e, por mais que você ganhe dinheiro, você não necessariamente vai ser feliz com a sua vida. Ou então, como diz um jovem comunicador que eu costumo seguir, se você faz yoga para ter um corpo sarado, tudo o que você terá como resultado é um corpo sarado. Se você medita com o objetivo de aprender a se concentrar melhor, uma concentração melhor é tudo o que você terá. Se você toca música para parecer um virtuoso, parecer um virtuoso (para alguns) é tudo o que você terá - sendo que, na verdade, você só estará enganando a si mesmo e talvez não entenda o que há de tão fascinante sobre essas práticas. Fique tranquilo sobre uma coisa: invariavelmente, é por motivos egóicos que começamos a tocar música ou meditar, já que é o ego que "quer fazer" algo, por quaisquer motivos que ele invente. Mas, se feito da maneira certa, logo percebemos que a melhor forma de progredir é fazê-lo pelo valor intrínseco, dispensando o extrínseco, sem objetivo mesmo. E aí, só aí, todo o resto vem de bônus. É um exercício de desapego, entendem? Objetivos são nada mais que pensamentos, e desapegar-se deles é o que fazemos quando eles surgem na nossa cabeça nos distraindo do que estamos fazendo agora.
O começo das práticas meditativas sempre costuma envolver o uso dos sentidos, porque eles nos ajudam a nos ancorar no momento presente, sempre retornando a um ruído, cheiro ou ao fenômeno da respiração. Algumas pessoas, como o próprio Ram Dass quando era vivo, meditam de olhos abertos. Mas conforme você vai pegando essa prática, você vai descobrindo novas fases desse “joguinho”. Eventualmente, você não vai mais precisar focar em nada concreto. Você vai conseguir simplesmente focar. No quê? No aqui, no agora, na experiência, que, no fim das contas, é você que determina. Já dizia mestre Shakespeare: não há nada bom ou mau, é pensar que torna as coisas assim. E como dizia mestre Nietzche, tem muita coisa para além do bem e do mau. Tem muita coisa legal que o nosso cérebro faz e que a gente provavelmente esqueceu, mas pode se lembrar. É nesse estágio que a gente pode começar a, espontaneamente, recuperar o acesso a sensações e sentimentos muito específicos que estavam guardados nas catacumbas esquecidas do cérebro. Tipo “aquela sensação que eu tinha quando estava chovendo e eu entrava na praia mesmo assim”, ou "a sensação de estar no ônibus indo para o trabalho ouvindo o noticiário em 2016" ou então "o gosto dos bolinhos de chuva da minha avó quando eu estava com catapora". Não tem palavras para descrever isso, e não precisa: a essa altura do campeonato você já vai estar muito ciente de que palavras são legais mas não dão conta de tanta coisa assim. Numa sessão de meditação, você se torna capaz de navegar pelo seu cérebro como se estivesse revendo fotos antigas guardadas naquele HD esquecido – você pode se tornar capaz de acessar as conexões que produzem “aquela felicidade específica”. Imagina, então, quando a prática for tal que tudo na vida é uma prática de meditação. Você vai sentir na pele que você é muito mais do que aquele personagem que estava preocupado com o que os outros estariam pensando da velocidade com que você toca as suas tunes. Daí a alegoria que algumas tradições orientais trazem, comparando a mente com a água: você só consegue ver o seu reflexo claro e bem definido na água quando ela está parada. Então, para se conhecer, você primeiro precisa deixar a água acalmar.
Nesse estágio, você vai ser muito mais capaz de contemplar não apenas o beat do metrônomo, que se traduz metaforicamente na respiração ou em outros estímulos sensoriais, mas no silêncio que existe entre cada beat. E a verdade, meus amigos, é que música nenhuma é feita de notas. Música é feita dos intervalos entre essas notas. Uma nota só tem um valor de sentido quando associada a outra num intervalo musical. E o sentido das melodias está não só nas notas que são tocadas, mas no silêncio entre elas. Da mesma forma, você não está nas coisas que você pensa e faz, você está no silêncio entre tudo isso: do silêncio é que tudo surge. Neste momento estamos criando um entendimento melhor da linguagem musical, por um lado, e, por outro, da linguagem não-conceitual que a mente usa para se comunicar consigo mesma e se entender melhor. Minha visão pessoal é de que esse é o motivo pelo qual arte e espiritualidade andavam de mãos dadas antes de os egos humanos começarem a querer dar nome, regra e localização geográfica para tudo: esse tipo de entendimento não-conceitual sobre a realidade é TÃO legal que a gente quer falar sobre isso e mostrar pros outros! Palestras e textos são bacanas, cara, mesmo, mas pô: uma música vai falar sobre coisas que são de outra natureza completamente. Não de uma natureza mística ou sobrenatural. Mas de uma natureza profundamente real, que está debaixo dos nossos narizes, que não requer nenhum poder mágico para acessar! É que nem quando acordamos de um sonho e ficamos tão empolgados com essa percepção de estarmos de repente acordados que queremos falar pra todo mundo do sonho que tivemos!
Foi inspirado nesse tipo de filosofia que Brian Finnegan compôs essa belíssima faixa, chamada "Flow, In The Year Of Wu Wei, que integrou seu mais recente álbum solo. Em entrevista sobre a obra, ele falou:
“Música é um comunicador poderoso. É a conversa que todos estamos tendo. E é uma pena que mais pessoas não estejam tendo essa conversa. Porque é nela que você compreende o quanto você tem em comum com os outros, enquanto seres humanos. Quando você se desapega de todas as palavras e sentimentos e só tem essa conversa.”
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