Querido leitor, hoje eu quero falar de uma coisa muito séria e polêmica: os ritmos irlandeses.
Em qualquer estilo musical, o ritmo é uma característica muito marcante e que, geralmente, carrega consigo as bases “genéticas” de cada gênero. Por exemplo, quando penso em uma música pop logo me vem à mente o tradicional “tum tá tum tum tá” executado pelos bateristas, ou seja, é uma característica rítmica bem marcante do estilo; ou então, quando penso em forró, eu ouço mentalmente um triângulo com seu “tik tik tik tik tik tik tik tik” (com todo respeito aos percussionistas, eu só não encontrei uma onomatopéia melhor) mas aí está outro exemplo de ritmo que marca o estilo. Aqui no Brasil a diferença entre samba, baião, forró, maracatu e outros relacionados está exatamente na rítmica: esta sequência de batidas que fica em nossa mente muitos dias depois de ter ouvido a música.
Pois na música irlandesa não é diferente. Ela é composta por ritmos chamados jig, slip jig, reels, hornpipes, valsas e, o que diferencia um de outro é a célula rítmica. Se você não estudou música e/ou não entende de teoria musical, tudo bem, quero construir este momento de uma maneira simples e acessível. Mas, por motivos de “ah! eu não me aguento” vou incluir também exemplos de notação musical. E aqui vamos nós.
Jig
Este ritmo é uma delícia de tocar porque é muito fluido e bem marcado. Em musiquês, nós o chamamos de 6/8 (seis por oito) e a tradução literal disso é que você vai contar ciclos de seis tempos rapidinhos. Mas ele tem um segredo que eu demorei alguns anos de conservatório para encarar que é o seguinte: quanto é seis dividido por três? Resposta: dois. Por este motivo matemático (e alguns outros mais) nós vamos chamar este ritmo de “ritmo binário”, ou seja, ritmo de dois tempos. “Mas Paula, socorro, como é que eu posso contar seis e contar dois ao mesmo tempo?” Desta maneira: bata palmas em ciclos de dois tempos. Um, dois, um, dois… em seguida, na primeira palma você conta de 1 até 3 e, na segunda palma, de 4 até 6: Um (1, 2, 3), dois (4, 5, 6) desta maneira os números 1 e 4 ficarão mais fortes sendo chamados de tempos 1 e 2 respectivamente, e os outros um pouco mais fraquinhos. A forma mais comum de se pronunciar esse ritmo é usando sílabas que representam cada um dos seis tempos. Então, com o mesmo exercício de marcar o tempo 1 e 2 com palmas, vamos substituir cada tempo da contagem de 1 até 6 pelas seguintes sílabas: Um (tá ka ta), dois (tá ka ta) notem que a primeira sílaba está destacada justamente por ser mais forte. Repita este exercício várias vezes. Em notação musical temos o seguinte:
Quando eu comecei a aprender este estilo, ficava um pouco confusa, mas ouvir um instrumento de percussão me ajudou muito. Por isso segue aqui um vídeo de bodhrán (leia-se bóuran) tocando esse ritmo seguido de uma música. Mas além desta música indicada no vídeo você também pode procurar por estes clássicos jigs: Banish Misfortune, Out on the Ocean, Irish Washerwoman, The Kesh jig.
Abaixo, um exemplo de jig tocado apenas no bodhrán.
E agora temos Cillian Vallely (Lúnasa) e Alan Murray tocando o jig Lark in the Morning.
Slip Jig
Este ritmo é um parente próximo do jig mas com um pequeno “rabixo” a mais. Aqui nós teremos um compasso chamado 9/8 (nove por oito) e, para entendê-lo, vamos usar a mesma lógica do anterior. Quanto é nove dividido por 3? Resposta: 3. Ou seja, neste ritmo contamos ciclos de três tempos, então, repetindo o mesmo exercício, batemos três palmas em que, para cada uma conto: Um (1, 2, 3), dois (4, 5, 6), três (7, 8, 9). E vamos chamar este de “ritmo ternário” em que os tempos 1, 4 e 7 vão ser os mais fortes sendo chamados de tempos 1, 2 e 3 e a forma mais comum de se contar também segue o mesmo caminho do jig, mas com 3 tempos. Então temos: Um (tá ká tá), dois (tá ká tá), 3 (tá ká tá). E a notação musical fica desta forma:
Seguem aqui exemplos do bodhrán tocando e um vídeo de tunes. Algumas tunes que você pode procurar também podem ser: The Butterfly slip jig, Farewell to Whalley Range, The Foxhunter’s slip jig, The Kid on the Mountain.
Abaixo os slip jigs interpretados pelo canal "The Whistler.
Valsa
Dito tudo isso, agora o que eu quero é te confundir um pouquinho rs. Brincadeiras à parte, a valsa também é um ritmo ternário, ou seja, contamos ciclos de três tempos. Aqui, nós vamos chamar o compasso de 3/4 (três por quatro) e, enquanto no slip jig, para cada tempo, eu conto outros três, na valsa isso não pode e não deve acontecer. O que acontece na valsa é apenas uma marcação ternária.
Olha só a notação musical:
Aqui vão alguns exemplos de valsas e como opção de busca deixo: Sí Bheag, Sí Mhór.
Reel
Reels são mamilos rs. Este ritmo é polêmico pelo seguinte: muitas fontes escrevem que ele é um ritmo marcado em 4/4 (quatro por quatro), mas algumas fontes dizem 2/2 (dois por dois) e, ainda já foi visto por aí a marcação em 8/8 (oito por oito). Pois é, como a música irlandesa é passada de geração para geração de forma oral, algumas coisas acabam caindo nesse jogo de telefone sem fio. Por tanto, eu vou trazer aqui a minha percepção sobre isso e, para mim, ele é um ritmo binário, ou seja, 2/2. Eu sinto e toco desta maneira mas estou aberta à discussão.
Recentemente, eu aprendi um macete para pensar neste ritmo. Pense em uma contagem binária e, para cada tempo, fale “Black Jack” dando uma certa ênfase à “Jack”. Resultado: 1(Black Jack), 2 (Black Jack). Vale ressaltar que cada palavra dessas corresponde a duas notinhas e por tanto juntas, são quatro notas. Por tanto, cada um tempo possui quatro notas.
Seguindo a notação musical:
O bodhrán tocando:
E este vídeo cheio de reels empolgantes junto com as seguintes sugestões: Cooley’s reel, Sally Gardens, Banshee reel, Boys of Mailin.
Hornpipes
Para terminar, temos este ritmo que possui um segredo intrigante: ele é um 4/4 (quatro por quatro) com tercinas espalhadas aleatoriamente pelos compassos. Pois é, foi isso o que eu disse, tercinas aleatórias. E, se você fica tranquile com isso, meus parabéns, porque isso quebrava minhas pernas nas minhas muitas primeiras sessions. Como é que eu saberia o momento de fazer as tercinas? Mas, ao longo do tempo, a gente se acostuma com tudo, não é mesmo?(talvez nem tudo) Pois bem, conhecendo mais e mais tunes deste ritmo, eu fui perdendo o medo e, de vez em quando, até prevendo algumas dessas aleatoriedades musicais. Além disso, todas as frases musicais terminam com um “pam pam pam” bem característico. Especificamente para este ritmo, eu vou trazer aqui alguns exemplos de partituras destacando tanto as tercinas aleatórias quanto os “pam pam pans” nas finalizações de fraseado.
Os rabiscos vermelhos são as tercinas aleatórias, e os verdes são os ditos “pam pam pans”. Mesmo se você não souber ler partitura, repare que as tercinas têm um número 3 acompanhando e os “pam pam pans” são três figuras, uma para cada “pam” e encontram-se bem ao final das frases (a barra dupla com dois pontinhos).
Segue mais um exemplo de tercinas aleatórias e “pam pam pans” nas finalizações.
Seguem aqui também o bodhrán sozinho tocando. Os vídeos deste ritmo serão as músicas destas partituras que deixei acima, que eu tirei de um fórum que concentra muita informação interessante sobre música irlandesa o https://thesession.org/ . Vale a pena dar uma conferida.
Bem, eu trouxe aqui um pequeno resumo dos principais ritmos irlandeses mas existem alguns outros que você pode vir a conhecer. Se você pretende começar a tocar em alguma Irish session ou até mesmo pretende formar uma banda, estes cinco ritmos vão lhe proporcionar um belo começo mas se ficarem dúvidas, ou a necessidade de uma troca de ideias, fico à disposição em nossas redes sociais para conversarmos.
Até a próxima.