Um pouco tardio para ser um artigo de "lançamento", posto que o álbum já foi lançado em março de 2021 – mas ainda perfeitamente atual!
Foi feliz consequência desses tempos pandêmicos que muitos dos mais atentos cronistas tenham parado para refletir sobre seus caminhos e tomado consciência do quão carentes estavam por um momento de aterramento no aqui e agora. Após a frustração inicial que todos experimentamos quando aquelas "2 semanas em casa" se provaram bem mais do que 2 semanas, em março de 2020, muitos de nós tivemos que aprender a conviver com um misto de pensamentos e emoções complicadas - algo entre o alívio de estarmos tendo tempo para nós mesmos, e o terror de estarmos tendo tempo para nós mesmos.
A experiência foi (e continua sendo) bastante singular a cada pessoa, mas ouso dizer que compartilho algo do que sentiram os músicos do mundo todo, que viram seus trabalhos interrompidos por tempo indeterminado. Do ponto de vista do flautista Brian Finnegan, isso foi especialmente frustrante já que, segundo ele, é justamente em tempos de aflição e incerteza que a música, a poesia e as artes em geral se fazem tão essenciais. Ele não se refere, é claro, à dimensão "escapista" que muitas vezes o entretenimento ocupa nas nossas vidas - mas, sim, à de nos acolher, nos lembrar da nossa humanidade e nos apresentar um mundo maior do que aquele contido dentro das nossas cabeças. Penso que o conflito é particularmente complexo, como talvez não estivéssemos sequer acostumados a considerar, uma vez que o isolamento social apresentou-se como a melhor forma de evitar ainda mais mortes pela Pandemia – simplesmente negá-lo não constituiria uma alternativa responsável para quem tivesse um compromisso com o bem estar dos outros seres humanos, por mais falta que nos fizesse o contato com eles.
Passada aquela frustração inicial, de quem estava já bastante acostumado com uma realidade frenética de gravações e shows, mestre Finnegan viu-se isolado em sua residência em Armagh (Irlanda Do Norte), junto à família, e ponderou que, de fato, fazia-lhe muita falta este momento de reflexão. Na verdade, ele percebeu o quão carente andava por um tempo em casa, e viu nisso uma grande oportunidade para colocar em dia uma prática diária mais dedicada da sua música – que há um tempo já não o satisfazia bem. E ele descobriu que o banheiro de sua casa, à noite, à luz de velas, era o lugar ideal para passar horas tocando. Era nesse cômodo que seu avô praticava suas gaitas-de-foles, anos antes – ele, que havia construído a casa onde hoje mora o neto. E foi lá que, entre março e abril de 2020, surgiram as tunes que dariam origem a um novo álbum.
São tunes não bem como as que Finnegan havia composto até então: são, segundo ele, mais difíceis e dissonantes, fazendo perguntas novas e mais capciosas. Tunes alimentadas por aquele sentimento de frustração, que quase esbarrava na injustiça, pelo que havia sido feito das artes num tempo em que elas seriam tão vitais. Apesar disso, aproveitou-se o artista do que achou de mais inspirador no momento que vivia: “Eu creio que são tempos de perigo [...] que acabam catalisando a criatividade”, ele disse ao Irish Times, “e eu sei de muitos artistas e poetas que vão ecoar esse sentimento. Foi aí que o trabalho começou a vir. Foi instintivo”. Não é, então, um esforço de negar a realidade dura do isolamento social, mas sim de elaborar as emoções complicadas que deve advêm.
Hunger Of The Skin é tão fruto deste mergulho interno de Brian Finnegan quanto dos últimos 11 anos que transcorreram desde o seu último álbum solo, The Ravishing Genius Of Bones. Foram 11 anos de muita produção e turnês com bandas como Flook, Kan e Aquarium (um conjunto russo de folk rock). Posto em isolamento, como todos nós, ele colaborou onlinemente com 24 músicos e poetas da Irlanda, Inglaterra, México, Rússia, Estados Unidos, Índia e Espanha. Sim, aqui estamos novamente testando os limites de linguagem, arranjo e instrumentalização da música tradicional irlandesa.
O título do álbum veio, então, da reflexão sobre a importância vital do toque e calor humano que ficou mais do que evidente neste momento histórico. Fazia-se sentir, desde os primeiros meses da Pandemia, a ausência da proximidade, do amor, da amizade, do estímulo emocional e intelectual que o contato humano proporciona. Tudo aquilo que o contato virtual não dá conta de suprir. A fome que se instala e que (até hoje) não é saciada nem pela mais brilhante tela de alta resolução, ou pela mais rápida conexão de internet. Uma fome que a tecnologia não sacia: a fome da pele.
A capa do álbum é uma contribuição do artista russo Rus Khasanov, aparentemente baseada em seu trabalho "Over Your Skin", de 2017.
DARE
O álbum é recheado de poemas de origens e idiomas diversos, mas “Dare” merece destaque especial. O poema da última faixa do álbum foi escrito e declamado por Morna Finnegan, irmã de Brian. Ela é antropóloga, com um trabalho de doutorado desenvolvido entre sociedades de caçadores e coletores na África Central, tendo vivido entre o povo Mbendjele, no Congo. Dentro desta outra linguagem de expressão humana que é a ciência, Morna acabou desenvolvendo um trabalho bastante síncrono com o novo álbum do irmão.
Pouco antes do lançamento, Brian Finnegan compartilhou em suas redes sociais um excerto de uma palestra dada pela irmã chamado "Why an absence of REAL touch is making us lonely" (“Porque a falta de toque REAL está nos fazendo solitários”, em tradução livre"), e eu recomendo enfaticamente assistir ao vídeo:
A palestra na íntegra, chamada "Touched: Hunter-Gatherers And The Anthropology Of Power" ("Tocado/a: Caçadores-Coletores E A Antropologia Do Poder, em tradução livre"), também está disponível no YouTube.
Foi esta palestra que fez Brian buscar sua irmã e convencê-la a participar do álbum. Segundo ele, o poema "Dare" dava conta de tudo o que Hunger Of The Skin se propunha a dizer.
FLOW, IN THE YEAR OF WU WEI
O primeiro single que chegou anunciando o novo álbum faz referência à filosofia taoista do “viver sem esforço”. Não se trata do elogio da preguiça, e sim do princípio de se fazer sintonizado e ressonante com a realidade. A idéia é tão simples de se explicar quanto complexa de se compreender, pelo menos num nível de experiência (para além das meras descrições e conceitualizações rasas que fazemos das coisas). Veja bem, a realidade é como um rio que estamos navegando: seria um desperdício de energia, e dos mais frustrantes, se tentássemos controlar os ventos e a correnteza – podemos, apenas, controlar o nosso barco, e fazer o melhor uso possível das condições presentes de vento e correnteza para navegarmos de forma mais tranquila e proveitosa. Para além de narrativas fantasiosas e conclusões especulativas sobre “o universo”, isso é o que a filosofia taoista ensina como maneira de nos tornarmos “um” com o universo: trata-se de uma união metafórica, em que a realidade não é rechaçada em virtude daquilo que nós gostaríamos que ela fosse – ela é abraçada, e, assim, podemos confiar nela e em nós mesmos. Em outra metáfora, é sobre o que fazem os mais habilidosos jogadores de pôker: eles não entretém a expectativa de controlar quais cartas lhe serão dadas, eles desenvolvem a habilidade de fazer o melhor uso possível das cartas que recebem. Também para o Irish Times, Finnegan contou da brilhante filosofia que sua avó lhe ensinou: “‘um pássaro não pousa na mão que tenta agarrar’. Se você deixa algo ser como é, é capaz que seja mais fácil de atravessá-lo. E assim foi estar em casa, com a minha família, assistindo às estações vindo e indo, e o quão enriquecedor isso foi para mim.”
Deixo, para os interessados, uma interessante palestra sobre a filosofia do Wu Wei, do comunicador Alan Watts:
A música em si é das mais surpreendentes que já ouvi. Ela se constrói lentamente, crescendo em intensidade e empolgação com o transcorrer da faixa. A primeira tune é um "aquecimento" para o que virá, diz Brian Finnegan, que associa a parte A com a sonoridade e estilo da música bretã, que admira muito. Em seguida, um breve tema de uma parte só faz um interlúdio entre este "aquecimento" e a segunda tune, que é bem mais intensa e complicada – entrecortada por um poema em russo e um solo de trombone e um toque de influências do flamenco, que o compositor absorvera em uma recente viagem a Sevilha. O poema e voz são de Boris Grebenshikov, líder da banda russa de folk rock Aquarium, com quem Brian Finnegan também toca e andou colecionando turnês pela Rússia e Ásia na última década. O final da faixa é como um acalmar da tempestade – nas palavras do compositor, é um "chegar em uma praia não-familiar, mas está tudo bem porque estivemos segurando o mesmo fio condutor, [...] que nos manterá firmes. [...] Um sentimento de esperança catártica, de que tudo ficará bem."
Aqui vale um comentário sobre o proceder de composição de Brian Finnegan. Segundo seu depoimento ao podcast "The Rolling Wave", publicado pela RTE, ele compõe de forma bastante intuitiva e informal (no caso deste álbum, no banheiro), tocando as melodias que vêm à sua cabeça sem muita preocupação com formalizações teóricas – diz ele que às vezes passa dias tocando uma tune nova sem sequer se tocar se é um jig, reel, etc. Ele chegou a comentar que, às vezes, seus colegas de banda têm até alguma dificuldade em identificar o "tempo 1" de suas composições. Para o "The SoundSpring Podcast", ele disse que não gosta de "forçar" uma composição a se formar – se, por exemplo, ele tem uma parte A de uma tune na cabeça, ele não sai "perseguindo" uma parte B, porque isso, em suas palavras, "quebraria o feitiço"; ele espera a parte B vir quando está pronta. As tunes que compõem "Flow, In The Year Of Wu Wei", então, não foram diferentes: elas surgiram espontaneamente em partes ao longo de sucessivas noites, até ele se tocar que seriam todas componentes de uma mesma faixa. E, uma vez compostas, ele deixa muito do arranjo nas mãos dos criativos músicos que chama para colaborarem.
O single foi nomeado "Best Original Track" pela RTE Radio 1 Folk Awards 2020. O clipe foi filmado em diversas locações pelo mundo: de Belfast (Irlanda Do Norte) à Cidade do México (México), de Kirov (Rússia) a São Petersburgo (Rússia), e, finalmente, em Armagh (Irlanda Do Norte).
TWO TREES / TONY
Uma casa que antes fervia de movimento e vida e, da noite para o dia, ficou esvaziada. Esta foi a experiência do senhor Tony Donnolly, que na Pandemia completou 90 anos. Ele é vizinho de Brian Finnegan em Armagh. Uma pessoa admirável, segundo ele, com o hábito de reciclar o lixo da rua, “como um monge cuidando de seu jardim zen”. Também é perito num antigo jogo irlandês de arremesso, como retratado pelo belíssimo clipe do segundo single que precedeu Hunger Of The Skin.
Tony sempre foi muito hospitaleiro e sábio, contador de histórias que são “como flores de lótus, revelando vidas que são vividas simplesmente, sem pressa, desde a época em que o meu avô construiu a casa em que hoje vivo”, escreveu Finnegan em sua rede social. “Ele é xamânico em seu conhecimento da terra, do povo e do saber popular.” Com a Pandemia, Tony achou-se profundamente solitário e, apesar de não poder colocar-lhe uma mão no ombro, Finnegan pôde conversar com ele por cima da cerca que separa seus terrenos.
A faixa é introduzida pela belíssima tune “Two Trees”, de Ashley Broder, que então nos leva para a composição que Finnegan fez em homenagem ao sr. Donnolly. Ainda, ela é temperada pela fala do próprio Tony, contando coisas boas de sua vida.
“Ele é o último do seu tipo, o mundo que ele conheceu se foi, meus filhos não conhecerão outro como ele”.
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No podcast “The Rolling Wave”, Brian Finnegan fala da sua esperança de que, em breve, possamos voltar a nos encontrar e compartilhar aquela experiência humana de que tanto carecemos nos últimos tempos. Ele lembra a experiência de tocar música ao vivo com outros músicos, algo muito difícil de descrever e que, possivelmente, só quem já viveu sabe exatamente como é. É um “soltar-se no prado”, sem paredes e sem teto, tendo apenas o aqui e agora e um fluir eterno do momento presente. Ele fica triste ao ouvir, de algumas pessoas menos cautelosas, que os músicos a partir de agora deverão "cair na real" e arranjar "trabalhos de verdade" – não sabem, nem de longe, o que é a experiência da música. Lembrou-me muito de uma frase célebre do Dr. Richard Alpert, que, após ter ensinado psicologia em Harvard e sido iniciado nas filosofias orientais na Índia (quando se renomeou Ram Dass), disse que “para aqueles que tiveram a experiência, nenhuma explicação é necessária, e para aqueles que não tiveram, nenhuma é possível”.
Hunger Of The Skin pode ser adquirido no Bandcamp do Brian Finnegan:
Alternativamente, pode ser ouvido nas principais plataformas de streaming:
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