Olá, caros leitores d’O Pint Diário. Eu sou o Leo. Eu sou um brasileiro que, por causa de uma série de anedotas do destino, toca um instrumento chamado flauta irlandesa – ou, como acaba sendo mais popularmente conhecido, Irish flute. Já falei um pouco sobre isso numa sériezinha de vídeos que fiz para o YouTube uma vez, e entrei em detalhes mais técnicos em uma entrevista que fiz com o flute maker Casey Burns. Mas nesse artigo, pretendo explicar de maneira mais direta e prática o que é esse instrumento.
Começo, então, contando um causo que me aconteceu no trabalho essa semana. Trabalho em uma oficina de confecção de instrumentos musicais, onde a circulação de músicos é bastante comum, e nessa ocasião o que aconteceu foi por conta de um sujeito entrou na oficina e veio até mim perguntar qualquer coisa. Ele vestia um colete sobre uma camisa, e do bolso interno do colete projetava-se para fora o tubo prateado de uma tin whistle – que NÃO é uma Irish flute, apesar de ser uma flauta e ser tradicionalmente irlandesa. Irish flute é a que ele trazia em uma das mãos: um longo cilindro de madeira preta com seis furos redondos em sequência, como os de uma whistle, e um sétimo, oval, por onde se sopra transversalmente. Essa, ainda, estava adereçada com 8 chaves prateadas, que tornam o instrumento cromático – isso é, ao contrário de uma tin whistle e das flautas só com seis furos, esse modelo específico é capaz de percorrer todos os 12 semitons ao longo de duas escalas e um tico. O homem que carregava esse instrumento me falou que ele também era luthier, e que trabalhava com o que chamou de “concert flutes” (ah, para quem não sabe, moro na Irlanda). Perguntei se por “concert flutes” ele queria dizer as flautas prateadas, de sistema Boehm – aliás, a nossa editora Paula Camacho, que fez conservatório de flauta erudita, escreveu um belo artigo sobre as impressões dela sobre a Irish flute. Em todo caso, o homem disse que não, que por “concert flutes” ele queria dizer flautas do chamado sistema simples, de concerto – como essa que ele estava segurando.
Espera, fiquei confuso. Achei que essa flauta que o homem segurava era uma Irish flute, e não uma concert flute. Pois uma examinada mais próxima me revelou que, de fato, a minha primeira impressão talvez tivesse sido ligeiramente precipitada: essa flauta tinha um jeitão mais próximo do tipo de flauta que é o último ancestral comum entre a Irish flute e a flauta prateada. Veja bem: sabe aquela história de que o homem não evoluiu do macaco, mas homem e macaco têm o mesmo ancestral comum na linha evolutiva? Pois é assim com a flauta prateada e a Irish flute: os dois são instrumentos modernos que compartilham um ancestral comum: a concert flute. A questão é que a Irish flute é um instrumento que, morfologicamente, se parece muito com o seu ancestral comum, e a transição entre um e outro é bem mais sutil. Chamam-se flautas de concerto porque essas flautas eram as que as orquestras de música erudita usavam antes da invenção do sistema Boehm – até o século XIX, quero dizer. São tubos de madeira até que razoavelmente espessa, cilíndricos, com seis furos abertos e um certo número de chaves, que pode variar. São, por sua vez, desenvolvimentos do traverso barroco. Aliás, consta que na virada para o século XVIII para o XIX, essas flautas transversais (que eram as “flautas transversais padrão” da música erudita) ficaram muito populares na Europa – quiçá como hoje são populares os violões. Aliás, não é tão incomum encontrar essas flautas para vender no Mercado Livre, às vezes por pouco mais de 1000 reais, e às vezes nem isso. Vale à pena comprar? O bom senso diz que não: nessa época muuuuuuuuitas flautas foram produzidas, muitas feitas de qualquer jeito, e muitas delas nem sequer eram feitas para tocar – uma vez encontrei uma flauta dessas com cabeça feita de marfim, um material que não tem um som nem de longe tão bom quanto a madeira, mas tinha um valor agregado de status superior, o que fazia da flauta um excelente artigo de decoração). Essas flautas, no século XIX, foram tão populares que, eventualmente, um sujeito chamado Theobald Boehm inventou um outro sistema de chaveamento para flautas e elas acabaram adquirindo essa forma cilíndrica e sendo feitas de metal (prata, níquel, até ouro). O sistema Boehm popularizou-se muito e muito rápido, pois os músicos de orquestra consideraram que o sistema Boehm respondia melhor às suas necessidades. Conta-se que, por um tempo, os luthiers que faziam flautas de madeira quebraram a cabeça para tornar suas flautas mais altas, eficientes, modernas, enfim, em competição com o novo sistema – mas, no fim, elas tornaram-se as “flautas de sistema simples”, como mencionei acima, um tipo popularmente inferior de flautas transversais européias. Assim sendo, foram vendidas por preços mais baratos para compradores de países europeus que, na época, eram mais pobres. Como, por exemplo, a Irlanda. E os Irlandeses abraçaram esse instrumento e aperfeiçoaram ele e começaram a tocá-lo de uma forma cada vez mais própria – de forma que o estilo da música irlandesa de se tocar flauta é, na verdade, uma junção de um determinado instrumento com uma determinada técnica. Ouça, por exemplo, essa moça que toca flauta prateada de um jeito tão caracteristicamente irlandês que o ouvido um pouco menos acostumado pode muito facilmente até se confundir:
Agora ouça o grande Matt Molloy, flautista dos Chieftains e da Bothy Band, que de uma certa forma ajudou a criar a linguagem da Irish flute moderna:
Pois na Irlanda, até hoje, encontram-se flautas feitas no século XIX, sendo tocadas em sessions por aí. Matt Molloy, por exemplo, toca uma flauta feita no século XIX. Aliás, a flauta que aquele homem trouxe à oficina em que trabalho tinha sido feita em Londres por volta de 1860. Ele me pediu que tocasse a flauta, e me dissesse o que achava. Toquei algumas tunes de session. A princípio, notei que, apesar deste modelo ter uma aparência e som já bastante próximos da Irish flute moderna, ela tinha os furos menores, o que para mim causava um certo desconforto para tocar. O volume também não era muito alto. Mas era afinada em A=440, o que mostra que já é uma flauta mais recente – muitas das flautas de madeira de concerto foram fabricadas numa época em que a afinação padrão ainda não estava padronizada em todos os países ocidentais. Muito boa a flauta! Aquele flute maker inglês do século XIX estava de parabéns! Confesso que nunca tinha tocado uma flauta de concerto desse tipo, mas o som dela me lembrou muito o de uma Irish flute, pelo menos eu tocando com a mesma técnica de embocadura. O som da flauta tradicional irlandesa é meio anasalado, quase como se estivesse sendo produzido por uma palheta (como a de uma gaita de foles, ou de um saxofone). Eu gosto desse meio termo sonoro pitoresco entre sopro e palheta, é uma das coisas que me apaixona nesse instrumento.
Quando terminei de tocar alguns sets de tunes, o dono da flauta me falou: “pára de usar a língua, use os dedos para fazer ornamentos! Tá quase parecendo o James Galway!”. Sir James Galway, para quem não sabe, é um grande flautista irlandês, famosíssimo por sua virtuosidade… no mundo erudito. No meio da música tradicional irlandesa, às vezes se nota uma certa indiferença ao mérito dele, pois a técnica e a forma de pensar música dele é muito mais erudita do que irlandesa – veja, por exemplo, esta gravação que ele fez de um tema irlandês, que mostra bem o seu estilo e sonoridade eruditos, que envolve, entre tantas sutilezas, o uso da língua para separar notas. A técnica do Irish, seguindo um pouco o espírito de emular a gaita, produz um som contínuo com o sopro, e as notas são separadas com ornamentos feitos pelos dedos. Claro que, hoje em dia, flautistas modernos como Brian Finnegan (Flook, KAN), Michael McGoldrick, e até o Kevin Crawford (Lúnasa) misturam ornamentações feitas com os dedos ou com a língua; e os estilos mais do norte da Irlanda também favorecem um pouco mais esse tipo de ornamentação bucal – mas de vez em quando esbarra-se em um certo purismo com relação a essas questões. Bom, vejam a diferença por vocês mesmos: nesse vídeo abaixo, James Galway e Matt Molloy discutem brevemente as diferenças dos dois instrumentos, tocando um pouco e comparando. Note que mestre Galway tem uma certa tendência elogiosa ao seu instrumento, e às vezes parece até que não dá o devido crédito à versatilidade e às possibilidades da Irish flute.
Eu me divirto muito com o final desse vídeo, porque lá pelas tantas começo a ficar meio incomodado com a forma de Galway se referir à Irish flute como algo mais anacrônico e mais inferior – e meio que se gaba da facilidade que seu instrumento fornece de se percorrer toda a escala cromática, tocando-a linda e velozmente. Pois Molloy, sem cerimônias, toca a mesma escala cromática, com a mesma facilidade, e ainda acrescenta ornamentos do trad.
É verdade que Molloy já falou, em uma entrevista, que a flauta que ele toca, do século XIX, é mais difícil de se tocar do que uma Irish flute moderna, como por exemplo as feitas pelo renomado Patrick Olwell – ainda assim, sua flauta favorita é essa que impõe essa “dificuldade a mais” mesmo. Mais então, é mais fácil tocar uma Irish flute moderna ou uma flauta prateada? Nem um, nem outro. Eu, que aprendi a tocar sopros transversais com a Irish flute, acho ela muito mais fácil do que a prateada. Já a Paula, que eu falei acima, pensa o contrário.
Mas vou dizer para vocês, é um instrumento bonito! E você sabia que o som dela fica cada vez mais profundo, quanto mais velho (e tocado) o instrumento for? Pois hoje, essas flautas como as do Molloy, antes consideradas flautas baratas e inferiores, subiram de vida e tornaram-se relíquias! As antigas bem feitas, hoje, às vezes são até mais caras do que as novas. E como eu faço para adquirir uma coisa linda dessa? Tem no Brasil para comprar? Bom, a resposta curta é não.
A resposta longa é que existem alguns luthiers brasileiros que fazem flautas de alumínio, bambu ou PVC com mais ou menos as mesmas medidas das Irish flutes, e que são inclusive bem afinadas e bem feitas. E não me entenda errado, boas flautas são feitas! Veja, por exemplo, esse vídeo do Brian Finnegan (bem jovem e de cabelo) tocando algumas tunes em uma Irish flute de bambu. Mas flautas irlandesas de madeira, como as que vemos por aqui pela Ilha Esmeralda, ainda não são fabricadas no Brasil. No vídeo abaixo, eu explico um pouco como adquirir uma Irish flute, morando-se no Brasil.
Apesar de no Brasil não termos ainda pessoas que fabricam essas flautas, temos alguns flute makers na América Latina. Enfim, e uma vez adquirido o instrumento – ou, então, se o sujeito preferir ir pela via da flauta prateada mesmo – como desenvolver essa técnica irlandesa? Bom... comece ouvindo! E ouça muito. Não se apegue tanto a receitas de bolo, que prescrevem formas específicas de se posicionar a boca e os lábios. Use eles de ponto de partida, sim, para se orientar. Mas prefira concentrar-se em entender como é o som que você quer produzir (daí a importância de se ouvir muito) e experimente com o seu instrumento. Cada flauta, ainda mais as feitas à mão é de um jeito, cada uma tem um formato diferente, um desenho ligeiramente próprio. Cada boca, cada lábio, cada maxilar é de um jeito também, e técnicas que funcionam para alguns podem não necessariamente funcionar para outros. Afinal de contas, a técnica da Irish flute é, assim como a da música tradicional irlandesa em geral, uma cultura oral, baseada em ouvir o que é feito e tentar reproduzir com o que você tem.