A música na Irlanda antiga e medieval: a Irlanda gaélica
Não existem registros claros de como seria a música irlandesa na antiguidade, embora os ciclos míticos irlandeses, escritos durante a era medieval mas relatando mitos antigos, falem diversas vezes dos poderes mágicos que os bardos possuíam, como canções capazes de adormecer exércitos inteiros, e continuar tocando e cantando mesmo após a morte. Podemos supor pelo menos que a música era presente e importante na cultura gaélica antiga. As Leis de Brehon, código legal gaélico medieval que sobreviveu até os dias atuais em forma escrita, explicita o status social de músicos de diferentes instrumentos, com o harpista no topo desta hierarquia. O treinamento do bardo irlandês durava 14 anos, e além de música, este também precisava aprender sobre jurisprudência, genealogia e história, demonstrando o papel importante que este músico tinha na sociedade gaélica. Muitos harpistas eram cegos, pois fazia parte da cultura irlandesa dar a todos uma função social e profissão, irrespectivo de deficiências físicas. Gravuras e inscrições de harpas na Irlanda datam do século IX em diante, em livros e em cruzes de pedra, embora provavelmente os instrumentos já existissem na ilha muito antes. Giraldus Cambrensis, clérigo galês que visitou a Irlanda em 1183, descreve o povo desta ilha negativamente, como sendo amantes da liberdade e diversão, com pouco interesse pelo trabalho, mas elogia a perícia musical do povo irlandês, que ele diz ser “incomparavelmente mais habilidoso do que qualquer outra nação que eu já tenha visto.” No fim do século XVI, a coroa inglesa intensificou sua campanha de invasão à Irlanda, adotando medidas que visavam minar a cultura gaélica. Leis foram passadas que exigiam a destruição de qualquer harpa apreendida, e a profissão de harpista viajante foi proibida, com a pena de morte imposta a qualquer um encontrado exercitando-a. Tais medidas apenas reforçaram o papel do harpista como mantenedor da cultura gaélica. Em 1601, os últimos remanescentes da nobreza gaélica, concentrados em Ulster, o norte da ilha, uniram suas forças a tropas espanholas para lutar contra o exército inglês na Batalha de Kinsale. A batalha foi uma derrota desastrosa para o lado irlandês, e significou o fim da antiga ordem social gaélica. Os nobres gaélicos sobreviventes emigraram da Irlanda para a Europa continental em fuga, levando consigo muitos dos seus bardos e músicos.
Fonte da imagem: Spring Hill College
A música na Irlanda de 1600 a 1850: o estabelecimento do domínio britânico e a Grande Fome
Após 1600, com a conquista da Irlanda finalizada, a coroa inglesa instaurou duras leis para assegurar seu controle sobre a ilha. O Estado inglês, que defendia o protestantismo, passou uma série de leis para coibir o catolicismo, que era a religião da maioria dos irlandeses, e consequentemente, excluir a população irlandesa de qualquer participação no Estado. Bispos, padres e o clero católico em geral foram banidos da Irlanda, e indivíduos de religião católica foram proibidos de ingressar no parlamento, no exército, exercer jurisprudência ou trabalhar em algum departamento estatal, ensinar ou manter escolas, possuir armas, cavalos de valor de mais de cinco libras esterlinas (um grande valor na época), e enviar suas crianças para serem educadas na Europa continental. Famílias irlandesas foram retiradas de suas terras, que foram dadas a famílias de imigrantes protestantes. Este processo foi especialmente acentuado no norte da ilha, com a imigração maciça de camponeses escoceses presbiterianos sendo incentivada pela coroa inglesa. 90% das terras da Irlanda eventualmente se tornaram propriedade de famílias de imigrantes ou da nobreza inglesa. Várias revoltas contra a coroa ocorreram neste período, mas todas foram eventualmente derrotadas.
Com este cenário, o antigo modo de vida do harpista viajante se tornou cada vez mais duro. Harpistas importantes continuaram a surgir, como Ruaidri Dáll Ó Catháin e Turlough O’Carolan, mas sem o mecenato da nobreza gaélica, o número de harpistas reduziu-se cada vez mais. Tornou-se claro, ao longo do século XVIII, que esta tradição estava em vias de extinção. Alguns festivais de harpa, patrocinados pela burguesia emergente que se identificava com a questão gaélica, foram realizados ao longo desse século, mas a arte da harpa gaélica infelizmente continuou a se tornar cada vez mais rara. Quando foi realizado o Belfast Harpers’ Festival, em 1792, apenas dez harpistas atenderam ao chamado. Edward Bunting, organista de uma igreja de Belfast, foi encarregado de documentar musicalmente o festival, registrando em um importantíssimo relato descrições das técnicas e maneiras de tocar dos harpistas remanescentes, além de transcrever para partitura várias peças do repertório dos harpistas. Infelizmente tais esforços não foram suficientes para salvar a arte milenar dos harpistas gaélicos, e no início do século XIX, com o falecimento dos últimos harpistas, a linhagem foi interrompida.
No século XVIII surgem os primeiros relatos dos mestres dançarinos viajantes. A dança era um passatempo extremamente popular por toda a ilha, em cidades e vilarejos rurais, e onipresente em ocasiões sociais, como casamentos e festejos sazonais. Acompanhados de um uileann piper ou violinista, os mestres dançarinos viajavam de vila em vila, ficando em cada uma por seis semanas de cada vez. Durante este período, ensinavam aos vilões novos passos de dança grupais. Aos alunos mais dedicados e talentosos, ensinavam passos de dança individuais, ou ‘solos’, que eram considerados o ápice da arte da dança, e eram executados sobre uma plataforma de madeira, normalmente metade de uma porta, retirada de uma casa para isso. Os mestres dançarinos ensinavam também esgrima e etiqueta aos jovens de classe social mais abastada, e consideravam a si mesmos como ‘gentlemen’. Cada mestre possuía seu circuito de vilarejos, e um mestre que quisesse incluir um vilarejo de outrem em seu circuito precisava desafiar o mestre a quem aquele vilarejo “pertencia” a um duelo público de dança, com o vencedor escolhido por aclamação popular. O mestre derrotado era forçado a abdicar do vilarejo em questão, não podendo mais ensinar nele. A rápida e explosiva popularização de tais danças foi fundamental na formação do gênero instrumental que veio a ser conhecido como a música de dança irlandesa.
No início do século XIX, com a revolução industrial se espalhando pela Europa, vários novos instrumentos, como a concertina e o acordeão, começaram a ser inventados, e antigos instrumentos, como a gaita de foles, foram progressivamente aperfeiçoados. Os vários componentes que formam as uilleann pipes modernas (a gaita de foles irlandesa), como o chanter, foles, drones e regulators, foram finalmente combinados de forma satisfatória, rapidamente popularizando esta versão do instrumento. Em pouco tempo surgiu o primeiro método para o instrumento (1800), e o instrumento foi apelidado, na época, de union pipes, devido à inovação de unir os regulators com o chanter. As uilleann pipes rapidamente tomaram o vácuo deixado pelo fim da harpa, com algumas peças do repertório de harpa, como slow airs e marchas de clãs, sendo incorporados ao repertório das uilleann pipes, que também abarcava o repertório de música de dança. Assim como os harpistas, os gaiteiros tinham status superior ao de outros músicos, por tocarem um instrumento tido como mais nobre. Igualmente, os gaiteiros muitas vezes eram viajantes, acompanhando mestres dançarinos ou viajando por conta própria. Boa parte do repertório de dança foi criado para a gaita de foles, e as particularidades deste instrumento foram fundamentais em moldar a estrutura da música irlandesa.
Após a apropriação e redistribuição de suas terras pela coroa inglesa, a população rural irlandesa, em especial no oeste da ilha, passou a se reorganizar em povoados conhecidos como clacháns, de organização familiar e comunitária. As poucas terras que eram cedidas aos habitantes também eram cultivadas comunitariamente, e o cultivo mais comum era o da batata, dada a capacidade deste tubérculo de ser cultivado em grandes quantidades em um pequeno espaço. A batata eventualmente se tornou o principal alimento de subsistência da população rural pobre. No início do século XIX os clacháns compunham quase três quartos da população irlandesa, e a música se fazia presente em festivais sazonais como Imbolg (Dia de Santa Brigite), Bealtine (primeiro de maio/início da primavera), Lughnasa (festival de Lugh no fim de julho/início de agosto) e Samháin (Halloween). Outras ocasiões de atividade musical eram os velórios e casamentos. Os gaiteiros viajantes se faziam presentes em todas estas ocasiões, tendo quartos especiais reservados para eles, e sendo sempre recebidos com uma dança comunal chamada ragairne. Como muitos gaiteiros eram cegos, possuíam um roteiro anual já fixo, viajando para o vilarejo mais próximo, muitas vezes com auxílio de uma criança local, à semelhança de seus antecessores harpistas.
O início do século XIX também testemunhou a introdução de um sistema educacional estatal na Irlanda, e, com ele, a disseminação da língua inglesa por toda a Irlanda, inclusive em áreas onde antes só se falava gaélico. Canções em inglês, compostas por irlandeses cuja primeira língua era o inglês, se popularizaram cada vez mais, assim como canções “macarrônicas”, misturando irlandês e inglês. Temas comuns de canções da época (em ambas as línguas) são a luta contra a coroa inglesa, canções de trabalho, canções religiosas, lamentos, sátiras, canções de ninar, cirandas e, em especial em comunidades de língua gaélica, canções folclóricas sobrenaturais, tratando das várias interações entre humanos e fadas.
No final do verão de 1845, manifestou-se nas plantações de batata da Irlanda o fungo Phytophthora infestans, causador da doença de batatas conhecida em inglês pelo nome de potato blight, e em português pelo nome de requeima da batata. O fungo, transmitido pelo vento, causa o apodrecimento da batata em poucos dias. O fungo se espalhou rapidamente pelas áreas rurais da Irlanda, destruindo a lavoura de subsistência de comunidades inteiras. A presença da requeima da batata se fez sentida até o final de 1849. Durante este período, mais de um milhão de irlandeses morreram de desnutrição ou doenças relacionadas.
(Fonte da imagem: Illustrated London News, December 22, 1849)
Sem comida e sem perspectiva, outros um milhão e meio de irlandeses se viram forçados a emigrar para a Inglaterra, América do Norte e Austrália. As
Comunidades mais afetadas foram as mais pobres, onde se falava gaélico e onde a música e a dança tradicionais eram praticadas. Vilarejos inteiros desapareceram neste período. O episódio ficou conhecido como a Grande Fome. Durante o episódio, a coroa inglesa foi duramente criticada por sua omissão, tomando apenas medidas paliativas de pouco impacto, e ativamente impedindo ajuda estrangeira de chegar à Irlanda em alguns momentos. Ao mesmo tempo em que a população rural morria de fome, as lavouras nas quais trabalhavam, majoritariamente de exportação, continuaram exportando quantidades recordes de comida para o Império Britânico. A população da ilha, de mais de 8 milhões de pessoas nos anos precedentes à Fome, reduziu-se a pouco mais de cinco milhões em menos de cinco anos, e deu início a uma curva negativa no crescimento populacional que durou mais de 100 anos (atualmente a população da ilha inteira não chega a seis milhões e meio). A Fome foi um divisor de águas na história da Irlanda, que transformou a sociedade irlandesa em seus fundamentos, e marcou a consciência nacional de forma indelével. Nas palavras de George Petrie, colecionador de música irlandesa na década de 1850, “a terra da canção não era mais melodiosa; ou, se um som humano chegasse aos ouvidos de um viajante, só poderia ser o fraco e desesperado lamento pelos mortos”.
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