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Foto do escritorLeonardo Ramos

Irish Jazz: Três Bandas Que Desafiam O Improvável


Segundo glauber, usuário do TheSession.org, jazz e música tradicional irlandesa são quase tão semelhantes quanto maçãs e elefantes. Entretanto, outro usuário chamado Pied Piper contrapõe esta brilhante máxima nos lembrando que maçãs e elefantes compartilham mais ou menos 85% do seu genoma. Assim sendo, a pergunta começou a me coçar a consciência: quão semelhantes realmente são esses dois gêneros? Quão compatíveis são? Existiria algum tipo de parentesco entre eles? Há algo que se interpela entre a fusão dos dois? Elefantes comem maçãs ou seriam as macieiras que se alimentam dos restos mortais de proboscídeos? As perguntas cresceram de tal maneira que não pude me segurar e fui contra tudo o que há de mais sagrado quando se trata de pesquisas casuais de internet: fui atrás de averiguar eu mesmo!


Pode-se mergulhar muito fundo no intenso universo da teoria musical para avaliar essa proximidade, de fato, e muitos músicos prodigiosos fazem bem isso. Recentemente, por exemplo, destrinchamos esse assunto longamente com Kevin Shortall, bacharel em Jazz formado na Inglaterra e grande expoente da música irlandesa no Brasil. E o veredito parece ser bastante conclusivo: são estilos musicais radicalmente distantes na sua forma de pensar e fazer música. Não obstante, nem todos os artistas parecem conformar-se com isso, e arriscam-se a experimentar com variadas possibilidades de encaixe entre os dois estilos, até chegar em algo que responde à nossa pergunta usando a música – ou, talvez, sugerem que a pergunta, desde o começo, deveria ter sido outra, a saber: qual é o som que sai da conversa pouco provável desses dois universos distantes?


TAKE 1: NOTIFY




De origem irlandesa, fundada em 2013 pelo concertinista Pádraig Rynne, Notify adota a estratégia de guiar seus sets com tunes, como fazem as bandas de trad, mas desde o primeiro instante fica claro que a atmosfera não vai ser exatamente a de um pub tradicional – além da melodia toda cheia de peripécias jazzísticas, a harmonia interpreta elas também sob outro ponto de vista, mais dissonante talvez, ou até consonante sob uma lógica musical que não é a que estamos acostumados por aqui. É difícil explicar, primeiro porque aqui entramos já no terreno em que dissonância torna-se relativa à percepção pessoal do ouvinte, algo que é pano pra muita manga no jazz – segundo, porque o Notify parece ter acertado em cheio no equilíbrio instrumental do trad com um acompanhamento de jazz, que por sua vez não deixa de continuar a serviço da melodia, como não deixa de ser característica da música irlandesa. Mas bem quando tudo parece razoavelmente transparente, a concertina que acompanhamos até então dá lugar para um belíssimo improviso nas teclas e a cozinha se solta e deixa claro o seu contraponto linguístico. É belo, não nego: algo daquele jazz melódico, meio característico dos anos 70/80, casa muito bem com o Irish, e não há forma melhor de explicar isso do que com a própria música do Notify – afinal de contas, para que gastar palavras imprecisas tentando em vão descrever algo que fica tão claro no som que eles produzem?




Além da concertina, o Notify conta com Tara Breen no fiddle, Davie Ryan na bateria, Rory McCarthy no piano e teclado, Adam Taylor no baixo e Hugh Dillon no violão e guitarra.



TAKE 2: ENSEMBLE ÉRIU




Igualmente concertinado, eu diria, mas mais insistente na forma rítmica do trad, o Ensemble Ériu confunde-se com o jazz em ainda outras instâncias. Notadamente influenciado pela música minimalista, ele insiste em motivos melódicos mais simples enquanto traz acréscimos disso que parecem sugerir que o caminho escolhido sempre é o irlandês – até que o som despenca em momentos reflexivos e despidos daquela segurança tradicional toda que foi sugerida até então. Algo aí me lembra um pouco as aventuras sonoras do The Gloaming: nas palavras do Journal Of Music, “a mistura de tunes experimentais com fluxos de ritmo e melodia fluindo em direções variadas significa que a música frequentemente flutua por um tempo, e depois se comporta dentro de um ritmo identificável, e depois flutua de novo”.



Nesse fluxo todo, as tunes são temperadas por atmosferas e comentários compostos por fiddle, flauta, marimbas e clarinete – além, claro, de mais um piano e bateria de grandissíssima sensibilidade.


TAKE 3: SEAMIE O’DOWD & KIERAN QUINN




Aqui temos outro ponto de vista jazzístico sobre a música irlandesa. A associação que fez essa dupla de instrumentistas incríveis é a de aliar o trad a algo mais da natureza do gipsy jazz. São Seamie O’Dowd, violonista, e Kieran Quinn, pianista. Nem um nem outro domina a melodia, mas alternam constantemente entre papéis melódicos e harmônicos. Entrelaçam-se como um ornamento irlandês, mas, pelo menos em contraste com as duas últimas bandas, parecem pensar mais pelo lado do jazz. Ainda em comparação, temos mais solos, mais improvisos, mais jazz. Mas temos tunes? Como não! Ambos são notáveis virtuosos em suas interpretações singulares do trad sob uma ótica ímpar de fusão musical. Chama especialmente a atenção a versão de The Musical Priest, uma inocente tune amplamente tocada em sessions de trad, aqui recontada no que eu chamaria da mais perfeita união de maçã com elefante que já se conseguiu produzir.



A alusão ao gipsy jazz não acua a técnica notadamente irlandesa de O’Dowd, e a histórica dificuldade dos pianistas de produzirem algo interessante e inovador dentro do trad nem de longe intimida Quinn, que, na minha opinião (pianista que também sou) dá uma aula das possibilidades de harmonia e fraseado escondidas e ainda muito pouco exploradas nas tunes irlandesas.


PLAYLIST TIME


Deixo vocês, caríssimas leitoras e caríssimos leitores, com uma playlist que venho montando com essas e outras bandas que se aventuraram a combinar o trad irlandês com o jazz das mais diversas formas. Recomendo abri-la direto no Spotify, pois esta plataforma aqui não mostra a playlist inteira.

Assim como as outras playlists d'O Pint Diário, ela está em constante transformação, sempre com músicas novas sendo adicionadas. Em breve, boto fé, uma continuação deste artigo tratará de mais dessas bandas.





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