Irish Session paulistana, no Deep Bar 611, Barra Funda.
Chamam de Irish session essa que é, quiçá, a epítome da música tradicional irlandesa. À primeira vista, assemelha-se uma session a uma roda de choro, ou mesmo a uma jam session jazzística – aliás, a palavra “jam” vem de “jazz after midnight”. Rezam algumas lendas que, na Irlanda, esses encontros de músicos tinham originalmente um intuito não muito distante dos jazzistas de antanho, que se enfurnavam em espaços seguros para conversarem entre si numa língua que seus opressores não compreendiam - justamente por ser uma língua que dispensa o uso de palavras. Num tempo em que a cultura Irlandesa era obscenamente reprimida pelo governo da Inglaterra, a música enquanto manifestação da experiência cultural e identitária daquele povo ressoava dentro de pubs – tocada por instrumentos que passar-se-iam por clássicos (como a flauta e o violino), naquelas mãos produziam cantos e timbres bem diferentes dos que se ouviam em salas de concerto.
Essas pessoas, muitas vezes, sequer eram musicistas profissionais: muitos eram trabalhadores que iam "jogar uma pelada" com os amigos após o expediente. O historiador Eric Hobsbawm conta, em “História Social Do Jazz”, como o jazz desenvolveu-se a partir de músicos não-profissionais que se apropriavam de instrumentos europeus e experimentavam tocá-los de formas pouco ortodoxas. Não muito diferente, surgiu o que se conhece hoje como fiddle: nada mais do que um violino tocado com uma linguagem mais folk, “suja” no vocabulário de uns, e mais apropriada para danças populares – como são, essencialmente, os temas da música tradicional irlandesas (a que chamamos de tunes).
Pouco se sabe sobre o que haveria de ter sido a música dos povos celtas que viveram milênios atrás: a maior parte dos registros desse gênero, tal como o conhecemos hoje, remontam ao século XIX – época em que a cultura irlandesa sofreu uma infusão de interesse e reverberação, acesa pelo sentimento de um povo que afirmava seu pertencimento a uma cultura própria, e fazia-o com um orgulho digno do mais sincero respeito. Perdura, reservado a dimensões talvez mais sutis da session, essa forte afirmação do pertencimento a uma cultura. E que ainda celebremos o legado do povo irlandês, não há dúvida – mas, com o tempo, com a globalização e com a apropriação desse “culto” por países como Brasil, há que se faça a filosófica pergunta: que outras formas de pertencimento cultuam hoje os frequentadores assíduos que voam para os pubs brasileiros, quase como numa romaria pós-moderna, para tocar tunes?
No Brasil, a energia retumbante de uma Irish session surpreende de tal maneira que muitos curiosos acreditam estar presenciando o show de uma grande banda celta fantástica. Ora, como mais haveriam esses músicos de ter tantos números bem ensaiados em um uníssono que efetivamente funde os timbres de todas as flautas, fiddles, gaitas, sanfonas, bodhráns, violões, bandolins, banjos, whistles, colheres, gaitas, bouzoukis…? Mas é ledo engano de quem assume que estes músicos já se viram alguma vez na vida. Claro, muitos deles já se conhecem, mas talvez só se encontrem naquele momento – enquanto outros jamais estiveram lá, e outros ainda sequer falam o idioma daquele país em que se encontram. Falam, antes de mais nada, o idioma da música tradicional Irlandesa, que permite as mais animadas e profundas conversas com quem quer que seja minimamente versado nele.
“Minimamente”, pois o menor requisito para se participar duma session consiste, meramente, de saber tocar o tema em questão dentro do ritmo proposto e com um instrumento bem afinado – além, claro, do consentimento dos outros músicos presentes. Temos, sobretudo fora do Brasil, sessions “fechadas” (em que apenas um grupo pré-selecionado de músicos toca), sessions “avançadas” (em que um nível mais proficiente de versatilidade na música irlandesa se faz imperativo), “slow sessions” (voltadas principalmente para principiantes) e sessions “abertas” (em que todos são bem vindos para adicionarem à roda) – as últimas sendo um tipo mais abraçado pelos brasileiros. De fato, não tenho memória de sequer uma session em que algum músico foi rejeitado. Muito pelo contrário! É realmente bestificante notar a receptividade e alegria com que cada novo músico, iniciante ou experiente, é recebido pelas nossas sessions - ecoando, mais uma vez, a tradição da Ilha Esmeralda.
Uma vez no meio da session, nota-se que não há lugar para egos. Do grego, a palavra “ego” significa “eu”. Nas tradições filosóficas do Oriente, o ego é aquele aspecto da mente que diferencia-se de todo o resto da realidade dizendo “eu”. Na neurociência, a noção de “eu”, diferenciado dos “outros”, é produto de um modo específico e circunscrito de funcionamento do cérebro, produzido pela rede neural conhecida por DMN (default mode network, o piloto automático que governa nossa mente quando não estamos fazendo mais nada com ela). Numa session irlandesa, portanto, não há solistas: os temas são tocados em uníssono por todos os que o conhecem. Também não se coloca um músico acima ou em detrimento de outro de forma alguma – e o ocasional personagem que chega com o intuito de propagandear sua virtuosidade individual encontra uma platéia vazia para seus caprichos.
No âmbito musical, a música tradicional irlandesa inverte os papéis de harmonia e melodia, diferentemente do jazz ou do choro. A melodia é a base da música, e não há limite para instrumentos melódicos ressoando o mesmo tema. Por outro lado, a harmonia é quem segue a melodia, sendo portanto mais livre, ou “fluida” – nas palavras de Paula Camacho, que em 2016 despencou nas tradicionais Irish sessions do Deep Bar 611, em São Paulo. Apesar de treinada em flauta erudita pelo Conservatório de Tatuí, e também no violão popular por seu virtuoso pai, ela logo percebeu que a complexidade da música irlandesa reside em instâncias mais inusitadas e inesperadas. Desde sua primeira session, ela foi entusiasticamente instruída na arte dos ritmos irlandeses e na afinação DADGAD do violão (muito utilizada na música irlandesa) por ninguém menos que Danny Littwin, host daquela session e violonista da celebrada banda Oran. Danny, por sua vez, aprendeu música irlandesa com músicos renomados como o irlandês Christy Barry. Eu, poucos anos antes, estava apenas começando a aprender música quando fui chamado para tocar junto, e devo muito do que aprendi a músicos como a Mila Maia (flautista da Oran e idealizadora d'O Pint Diário) e o Sandro Bueno (que também tocou na Oran, no Jornada Ancestral, e hoje mora em Portugal). A Mila, por sua vez, aprendeu muito com mestres como o Kevin Crawford (flautista da Lúnasa). Assim é o cenário que trago a vocês, caros leitores: uma session irlandesa é um lugar em que os mais experientes e célebres sentam-se ao lado dos mais principiantes e dividem seus conhecimentos com a empolgação de quem realmente deseja ver essa música ressoando por cada vez mais pessoas. Fala-se não da “minha alegria”, mas, simples e grandiosamente, da “alegria”. Hoje, Paula escreve para O Pint, é violonista da banda Harmundi, de música irlandesa psicodélica, substitui Danny na Oran quando necessário, e dá aulas online de violão irlandês. Na verdade, ela fundou a Harmundi junto comigo e com o senhor Thomas Mourão - e foi justamente na session que nós nos conhecemos e começamos a tocar juntos.
Enquanto epítome e fonte de onde emana todo o sentido mais profundo que a música irlandesa tem para os músicos que a frequentam, a session é o lugar de onde tudo sai e para onde tudo retorna. Não é de surpreender-se que o mais exausto dos instrumentistas, após subsequentes e estressantes shows numa noite de St. Patrick’s Day, não pense duas vezes antes de finalizar sua jornada numa session com quem tiver uma réstia de energia no corpo. Nesse sentido, a session não é determinada só pelo ambiente do pub e pode inclusive brotar em botecos de esquina, parques, calçadas, cozinhas, aeroportos, carros parados no trânsito e vagões de metrô (true story). Eis a diferença entre um show e uma session: não se trata de um trabalho, não há obrigações, não há cobranças e não há julgamentos. A session não deixa de ser relaxante e revigorante como uma poderosa sessão de meditação, em que os temas são mantras e o clima é de união com o universo. O escritor Ciaran Carson, em seu encantador livro “Last Night’s Fun: In And Out Of Time With Irish Music”, conta sobre sessions que viram o nascer do sol e ainda assim persistiram – apesar, inclusive, da exaustão dos músicos. Cláudio Crow, vocalista e violonista da banda Fianna, me disse uma vez que estes músicos tocam porque precisam tocar: porque a música não pode parar, e eles estão lá quase como meros subservientes da música, a serviço desse “algo maior” que ela é. Conheci Cláudio na primeira Session Nacional Brasileira (retratada abaixo), organizada em dezembro de 2016 pelo gaiteiro Alex Navar, que reuniu músicos de todo o Brasil no finado Ye Olde Pub da rua Augusta – onde tocamos durante 7 horas seguidas, sem pausas e sem repetir tunes. Nessa ocasião, toquei até meus dedos pedirem arrego (e uma tala ortopédica pelas duas semanas seguintes), e então cantei até a minha garganta pedir arrego.
Desde aquele dia, Cláudio tornou-se um valoroso parceiro de banda e mestre nas artes do palco, quando me convidou para tocar ao seu lado na Fianna. Alex abriu-me valiosas portas e segue fomentando a música irlandesa por aqui como presidente da Comhaltas Brasil. Danny, que conheci nas sessions do Deep Bar 611 anos antes, tornou-se um querido professor das sutilezas dessa linguagem musical, e amigo que sempre me manda piadas de sua criação pelo whatsapp. Não conheci o sr. Carson, mas Danny contou-me um pouco sobre sua pessoa, e sobre tantas outras personalidades que teve a sorte de conhecer em sessions mundo afora. Paula tornou-se minha amiga, parceira de bandas e projetos (como esta revista virtual) e, mais recentemente, de vida: casamo-nos 4 anos após aquela fatídica session em que ela apareceu pela primeira vez.
primeira session nacional brasileira, em 2016.
Deixo, pois, anexo a este retrato sentimental que pinto sobre a “romaria” que nos é tão cara, um conjunto de guias para o aventureiro que planeja “romar” ao lado dessa comunidade cada vez maior de músicos brasileiros que tocam temas irlandeses. Não bem “regras”, pois, como dito, não se trata de um trabalho – “trabalho”, termo que deriva do latim “tripalium”, um antigo e assustador instrumento de tortura. Pois é justamente com o intuito de evitar a dimensão torturante de qualquer aglomeração humana que elaborei, ao lado da Mila Maia (flautista da Oran e idealizadora d'O Pint Diário, que me convidou a tocar minhas primeiras tunes na session do Deep Bar 611), essa série de orientações, com base na tradição irlandesa de sessions – traduzidas e adaptadas para o nosso contexto brasileiro, tal qual praticamos por aqui há décadas.
Chegando na session, aja com educação e respeito: dê boa noite e tome seu tempo para ouvir e absorver a música antes de começar a tocar. As pessoas sempre têm muito gosto em ouvir o que você tem a dizer quando você ouve o que elas estão dizendo.
Dessa forma organiza-se a dinâmica dos temas em uma session: um músico “puxa” uma tune, e quem sabe tocá-lo pode tocar junto. A tune é repetida quantas vezes o músico julgar cabível, o que geralmente varia de duas a cinco vezes (mas pode estender-se se ele achar que o uníssono ideal ainda não foi atingido). Quando está pronto para mudar para a próxima tune, este músico sinaliza para os outros com o olhar, com a cabeça ou gritando “HUP!” É importante chamar atenção para dois pontos aqui: primeiro, não se puxa uma tune no meio do set que outro músico está conduzindo, espera-se o silêncio para propor um tema novo; e segundo, não se deve confundir “HUP” com “IHA”, ou outras manifestações munidas da vogal “I” que são emitidas por músicos extasiados ou ébrios.
Se você é iniciante e quer aprender, sinta-se à vontade para perguntar acordes, ritmos, tons, e mesmo puxar tunes numa velocidade que lhe for confortável. Ainda que você não pergunte, os músicos mais experientes podem te abordar para corrigir algum erro seu, ou dividir com você alguma orientação pertinente. Não leve isso a mal, não se sinta intimidado e não pare de tocar: o intuito deles é sempre te ajudar e te ensinar a tocar cada vez melhor. A session é, sem dúvidas, a melhor escola de música irlandesa que há.
Nas palavras de Danny Littwin: a afinação não é opcional. Além de afinar antes de começar a tocar, vale lembrar que, ao longo da session, os instrumentos aquecem (e umedecem, no caso dos sopros), então é necessário reafiná-los periodicamente. O mesmo vale para a rigorosidade com os ritmos: a empolgação e a experiência dos músicos, assim como a natureza dançante da música, geralmente leva-os a tocar muito rápido, mas isso não é obrigatório! É sempre preferível tocar lentamente do que fora do ritmo.
Melódicos (flautas, fiddles, gaitas, whistles, banjos, bandolins, concertinas, etc): se você se sentir confortável, e souber, pode fazer variações sobre as melodias. A música irlandesa tradicional não dá tanto espaço para improvisos como os do jazz – mas isso não significa que não há espaço para criar em cima das tunes. Dizem os irlandeses mais experientes que a graça reside, justamente, em manter o uníssono sem jamais tocar a mesma frase exatamente do mesmo jeito. Mas não se preocupe com isso: o que se espera é que você toque a melodia com os outros. Variações vão surgir sob os seus dedos quando elas estiverem prontas.
Harmônicos e rítmicos (violões, baixos, bodhráns, acordeões, colheres, meias-luas, batedores de pé): para evitar dissonâncias e desencontros, recomenda-se que se comuniquem entre si e sigam uns aos outros. Originalmente, as tunes eram tocadas exclusivamente por melódicos, e os harmônicos foram introduzidos só bem mais recentemente. Por isso, a harmonia é “improvisada” na hora e, então, é costumeiro que apenas um harmônico e um bodhrán toque por vez, e que os dois conversem bem. Se mais de um for tocado ao mesmo tempo, é importantíssimo que um harmônico determine a harmonia e os outros o sigam. Por exemplo, se um violão começar a fazer a harmonia, preste atenção em que acordes ele está fazendo, e siga-o. Ou, se um bodhrán começar a fazer o ritmo, prestem atenção e siga este ritmo.
Ouvintes: lembre-se que a session é feita pelos músicos e para os músicos. Cantar junto, bater palmas e pés são bem vindos, mas evite tratá-los como uma banda contratada, por exemplo fazendo muitos pedidos de músicas que você quer ouvir. Peça, mas não se surpreenda se não tocarem.
Dificilmente um instrumento será rejeitado numa session. Para além dos mais tradicionais que mencionei, já vi violas caipiras, violões tenores, clarinetes, cellos, contrabaixos, duduks armênios, gaitas de fole galegas, tambores xamânicos, zabumbas, ocarinas, panderetas, escaletas… o único instrumento que já vi rejeitado foi o kazoo.
Com alguma margem para expansões, o repertório das irish sessions gravita o universo dos temas e canções irlandeses, tradicionais e contemporâneos: jigs, slip jigs, reels, slides, hornpipes, polkas, valsas, drinking songs, rebel songs, baladas… este repertório não costuma abranger temas medievais ou derivações cinematográficas como o tema do Hobbit – na dúvida, perguntar nunca ofende!
ÓTIMO artigo! Conteúdo muito interessante e didático sobre a música irlandesa, sobre a sua divulgação no Brasil. Eu ñ sabia que havia tanta gente aqui se dedicando e divulgando essa música! Parabéns, Leonardo! Espero ler outros artigos seus para aprender mais sobre essa manifestação artística que me fascina!