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Foto do escritorLeonardo Ramos

Karate Irlandês, parte I: Por Dentro Da Oficina De Luthieria De Paul Doyle

Atualizado: 27 de jun. de 2022

Eu nunca gostei muito de jogos com regras que são tão complicadas que nos fazem gastar mais energia tentando entender a semântica do manual do que aproveitando o jogo em si. Principalmente quando tudo isso é feito em nome de certas abstrações pouco substanciosas como "ganhar" ou "perder". Eu era aquela criança que ficava entediada depois de meia hora de War e começava a querer fazer outras coisas, e deixava alguns amigos muito transtornados com a aparente falta de comprometimento com a missão de conquistar sei lá que território e destruir sei lá que exército. Não sei, me faltava aquela motivação para manter a cabeça no jogo, sacam? Mas nada contra jogos – veja uma Irish session, por exemplo, que é um jogo em que a maior parte dos jogadores está lá pelo prazer de se jogar, e não porque têm o objetivo de chegar em algum lugar específico. O filósofo Alan Watts, que era bastante popular nas décadas de 60 e 70 costumava dizer que se tocássemos música para chegar em algum lugar, os melhores músicos seriam os mais velozes, que chegam mais rápido ao fim da peça, e as mais belas sinfonias seriam compostas apenas de um único acorde final. Isso ele usava de metáfora para a experiência de se viver - e, na verdade, acho que a melhor forma de descrever a vida é como um Grande Jogo Dos Jogos em que a única regra é “você tem pouco mais de meia dúzia de décadas para fazer o que você quiser desde que não cause danos aos outros jogadores”. Watts costumava defender essa visão de mundo com muita fervorosidade e coroava suas inspiradas aulas propondo que, bem, se não vamos usar esse pouco tempo que temos de vida para procurar aproveitar tudo o que fazemos (por mais difícil ou contra-intuitivo que isso pareça à primeira vista), qual seria o ponto de viver, em primeiro lugar? Note-se que inclusive nem estou falando de jogos que alguns privilegiados têm o direito de jogar, como o jogo de acumular riquezas ou comprar coisas caras ou ter um alto posto numa empresa. Em boa verdade, o psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi escreveu certa vez que, dado um mindset minimamente flexível, qualquer experiência pode ser encarada como um jogo aproveitável e absorvente pelo jogador. Sim, até War – mas também ele conta, em seu livro “Flow: A Psicologia da Felicidade”, de casos de trabalhadores de linhas de produção em fábricas e prisioneiros de guerra que foram capazes de enxergar a sua situação com tal distanciamento e leveza que, de fato, transformaram suas realidades em “experiências autotélicas” – que é como Csikszentmihalyi chama uma experiência que é aproveitável pelo seu valor intrínseco, e não pelo que virá de conseqüências ao fim e ao cabo. Uma vez escrevi isso sobre a música irlandesa: que o intuito de uma session é se divertir tocando e não mostrar para os outros o quão virtuoso você é, e é bem assim que fazemos para aprender música da forma mais eficiente o possível: curtir o que você está tocando é o melhor combustível para te motivar a continuar tocando. Bom, mas também não é só porque esse tipo de mentalidade é possível que a gente consegue simplesmente “decidir” encarar a vida inteira dessa maneira daqui pra frente e pronto – na verdade, há diversas linhas filosóficas, algumas milenares, que têm justamente o intuito de nos “treinar” a desenvolver uma mentalidade dessas, como o Taoismo, o Budismo e a psicanálise.


Infelizmente, a receita federal irlandesa tem uma visão ligeiramente diferente da minha, e entretém jogos bem difíceis de se aproveitar, muito voltados para resultados finais que são a resolução de dificuldades que ela mesmo impõe – da mesma forma como eu não entendia muito o War porque não via muita motivação em destruir o exército imaginário do meu amigo, a burocracia fiscal que alguns países criam para resolver problemas imaginários são um grande desafio para o brasileiro que está começando uma vida nova no exterior. Na Irlanda, é preciso dar conta de toda uma parafernalha burocrática para que eu possa começar a jogar o jogo do mercado de trabalho: não basta saber o ofício para poder começar a trabalhar com ele e ganhar por isso, o que é a parte mais divertida do jogo – é um tal de número disso pra cá, registro daquilo pra lá, carta com senha temporária pra tudo quanto é lado… e muitas vezes caímos naquela armadilha, “você precisa do documento A para tirar o documento B, e você precisa do documento B para tirar o documento A”. E apesar dos meus esforços para resolver esses quebra-cabeças, enquanto eu esperava pacientemente para receber a bênção da receita para poder começar a trabalhar na cidade de Galway, os meus créditos monetários (um tipo de mana que você precisa para poder usar os poderes especiais de comprar comida e dormir sob um telhado) já estavam sendo absorvidos pelo jogo da vida a todo vapor. Logo concluí que esperar sentado não seria uma idéia muito prudente.


Pois lá fui eu atrás de uma alma que compartilhasse da minha falta de paciência com os kafkianismos da vida e se dispusesse a me contratar apesar da minha documentação pendente. Primeiro fui atrás de lojas de instrumentos musicais em Galway, e ofereci meus serviços de vendedor.


Minha esposa Paula encontrou no busking uma boa forma de juntar créditos monetários enquanto a Imigração se fazia de difícil com seu visto de trabalho. Ao fundo, uma das lojas de música em que entreguei currículo.

“Qual a sua experiência com vendas?” – me perguntavam os donos das lojas.


“Bem, eu tenho pós-graduação em divulgação científica, que é basicamente o jogo de vender um produto de nicho para uma clientela que não necessariamente está tremendamente interessada. Usei tudo o que eu aprendi lá para vender shows de música irlandesa no Brasil, e consegui agradar muitos clientes.” – apesar das boas conversas que tive, advindas do meu pitch mirabolante, nenhuma das 4 lojas de música que achei em Galway quis arriscar contratar um vendedor de aquecimento global para negociar instrumentos musicais. Quer dizer, na verdade, o Google insistia em me mostrar uma quinta loja, de um certo Paul Doyle, mas a localização no mapa estava errada e eu acabei desistindo de procurá-la.


Sendo, também, fotógrafo, tentei então entregar meu currículo em lojas de fotografia, agências de turismo… hotéis… hostels… até finalmente esgotar o meu estoque de currículos e decidir voltar para casa para pensar nalguma estratégia para levantar um pouco de capital enquanto a receita federal decidia o que fazer com as minhas informações. No caminho de casa, passei por um estreito beco desses que parece uma máquina do tempo arquitetônica, que nos dá um relance muito parcimonioso sobre uma época bem anterior e diferente da que vivemos hoje. Em uma das paredes de pedra, havia uma placa belíssima, pintada a mão, que dizia: “Paul Doyle Musical Instrument Maker” – logo abaixo, lia-se “John Herrick: Traditional Signs”, presumivelmente o autor da placa que me informava a real localização da loja deste tal de Doyle. No fundo daquele beco, achei uma porta de madeira cortada horizontalmente na metade, com uma placa de madeira com o nome “Musical Instrument Maker” entalhado. Bati na porta e esperei por uma resposta. Na verdade, não esperei muito, tornei a bater novamente. Algo se mexeu dentro daquele lugar misterioso, e passos muito calmos pareceram descer uma escada e trazer até a porta um senhor que abriu apenas a metade de cima – e me olhou com um semblante incógnito sem dizer uma palavra.



“Oi, meu nome é Leonardo. Eu sou do Brasil, acabei de me mudar para Galway e estou precisando de um trabalho. Toco música tradicional irlandesa e vi que você vende instrumentos. Me perguntei se por acaso você estaria precisando de ajuda.”


“Você é um bandido?” – perguntou-me aquele senhor.


“Não senhor, só procurando um trabalho mesmo. Você por acaso está precisando de alguém para te ajudar aqui?”


Ele abriu, enfim, a metade debaixo da porta. E me informou:


“Eu tive um AVC.”


“Uau… puxa… sinto muito! O senhor está bem?”


“Sim” – ele respondeu, pela primeira vez flexionando o tom de voz ligeiramente, na direção de uma certa indignação.


“Caramba… e há quanto tempo foi isso?”


Sem perder o ritmo calmo e contemplativo com que me recebeu, ele prosseguiu:


“Minha mão esquerda não está funcionando direito. Eu perdi a habilidade de tocar 18 instrumentos.”


Com o coração na mão, não soube bem o que responder, a não ser reiterar o quanto eu sentia por isso.


“O senhor é o Paul Doyle?”


“Sim.”


“Eu adoraria conhecer a sua loja!”


Como se eu tivesse dito as palavras-chave para uma esfinge que guarda um grande segredo com uma grande charada, ele girou 180 graus e subiu novamente as escadas que davam de frente para a porta, deixando a passagem livre para que eu o seguisse.




O primeiro andar, ao lado das escadas, era uma sala meio escura com mais madeira por metro cúbico do que muitas florestas tropicais que conheci Brasil afora – pranchas de mais de 3 metros empilhadas até a altura da minha cintura, outras não tão longas apoiadas contra todas as paredes e ao redor de uma porção de máquinas de serrar, furar e lixar, tudo forrado da mais fresca e perfumada serragem de todas as cores que você possa imaginar. Uma visão digna de um filme do Harry Potter, um cenário que facilmente encontraríamos no Beco Diagonal. A escada era também prateleira para mais uma coleção de tábuas, pranchas e retalhos de madeiras diversas. E ela levava a um segundo andar que era ainda mais surpreendente: se a parte de baixo da oficina era governada pela madeira bruta e sua fiel maquinaria bruta, o andar de cima era o domínio dos instrumentos musicais. Não, não quero dizer como as lojinhas que encontramos por aí, com duas dúzias de guitarras penduradas na parede e uns três pianos no canto.




As prateleiras, as mesas, as paredes, o chão, o teto – tudo estava absolutamente forrado de instrumentos musicais, um por cima do outro, cada um em um estágio diferente de produção. Braços, tampos, corpos, fretboards, arcos, cordas, de violões, bouzoukis, violinos, violas, violões de braço duplo, banjos, bandolins, mandolas, harpas, bodhráns, flautas, cítolas, guitarras, baixos, cellos, hurdy-gurdies, e outras tantas variedades que nem me arrisco a tentar nomear. Sem falar na multidão de ferramentas de todos os tipos e formatos, que sugeriam que o senhor Doyle já teve muita gente trabalhando com ele naquela oficina – e, claro, sem falar em toda a madeira, também de todas as cores, densidades e texturas que se possa imaginar, e que aqui já empilhavam-se em formas menores e mais manuseáveis e transportáveis, prontas para serem trabalhadas. Fui seguindo Paul por uma tortuosa e estreita trilha de piso vazio que contornava uma grande mesa forrada de instrumentos até a altura dos meus ombros, e ele sentou-se à mesa em que trabalhava.



De um lado dela, uma fileira de violinos de violas estavam pendurados a espera de algum destino que não me parecia muito claro. De frente para a mesa, um varal com dezenas de arcos de violino acortinavam uma janela e uma pilha de gavetinhas dos mais variados ítens que sequer tive capacidade de imaginar quais seriam. À direita da mesa dele, uma parede forrada de ferramentas e, em um canto, tufos longuíssimos e parrudos de crina de cavalo, de cor branca e preta (provenientes de cavalos brancos e pretos, respectivamente) esperavam pela oportunidade de integrarem novos arcos. Uma certa parede era decorada com fotos dos instrumentos feitos ali nas mãos de algumas personalidades conhecidas, como Bono e Andy Irvine. Muito conversador e empolgado, Paul foi me contando sobre como seus instrumentos foram e são usados por alguns dos maiores músicos da Europa, e sobre todo o reconhecimento que seu trabalho já teve em seus mais de 50 anos de experiência. No fundo da oficina, uma vitrine protegia alguns instrumentos especialmente exóticos e de beleza extraordinariamente cativante:


“Esses são os meus instrumentos dos sonhos. Eu fico sonhando com eles e construo eu mesmo.” – ele me falou


“Sabe, quando eu era criança adorava ir nos museus e ficar admirando a sessão de instrumentos antigos e exóticos… passava horas imaginando como eles deveriam soar e contemplando toda a arte e minúcia na produção deles. Esse lugar me traz muito essas memórias.”


Ele me apresentou para cada um dos seus xodós: um violão barroco, uma guitarra elétrica, uma viola-cítola, um bouzouki, um violão. O som que aqueles instrumentos produziam era absolutamente inacreditável – como se tivessem algum tipo de amplificação invisível.


“Eu inventei um jeito de colocar um amplificador dentro do instrumento” – ele me disse, o que na verdade me pareceu me fazer bastante sentido. Mas então percebi que ele estava brincando. Depois de um jogar um pouco de conversa fora, ele voltou sua atenção para um bouzouki que estava em cima da sua mesa, que tinha o tampo separado do corpo. Aproveitei a oportunidade para reiterar minha missão naquele estabelecimento, apesar de que sinto que o meu tom profissional tenha ficado um pouco afetado pelo deslumbre todo:


“Paul, eu adoraria te ajudar por aqui, mesmo.”




“Você tem alguma experiência com luthieria?” – essa pergunta já me havia sido feita naquele dia, por algum outro dono de loja de instrumentos, e, pego meio desprevenido, não soube responder de maneira muito encorajadora (“não… mas eu já fiz uma flauta de bambu…”). Dessa vez, tendo já passado por esse desafio no jogo, eu tinha a resposta pronta:


“Nenhuma. Mas sou muito bom com as minhas mãos, sei usar ferramentas e aprendo rápido.”


“Hm.” – o que me pareceu um momento de descrença, mais tarde fui entender que é a forma como Paul sempre para para ponderar com calma sobre as informações que lhe são apresentadas. Do auge dos seus 69 anos, tragicamente debilitado por não um, mas quatro AVCs recentes, ele age como se tivesse todo o tempo do mundo à sua disposição. E quem vai dizer que não tem?





“Se você voltar amanhã ao meio dia eu faço uns testes com você e vejo se você pode me ajudar a ganhar dinheiro. Se eu achar que você vai ser útil, posso te pagar um pouquinho, mas não tenho muito. Não tenho conseguido entregar muitos trabalhos porque a minha mão esquerda não funciona mais, então estou com muito pouco para investir.”


“Não tem problema, só preciso do suficiente para pagar meu aluguel.”


“E quanto é o seu aluguel?”


“No momento estou pagando 500 euros por mês.”


“Hm.”


Ele estendeu a mão e pegou uma mandola que estava inacabada em um canto. E me pediu para lixar a lateral até que ela ficasse bem lisinha e sem nenhuma mancha de cola. Vendo o que fazia, ele logo me interrompeu:


“Você tem que lixar no sentido da fibra da madeira, para que os arranhões da lixa não apareçam.”


Lixei por alguns minutos, e ele me disse:


“Posso te pagar um pouco mais do que o seu aluguel.”


“E quais os horários da oficina?”


“Eu abro todos os dias, de segunda a domingo, do meio dia às 10 da noite.”


“Hm.” – resolvi dançar conforme a música. Tornei a lixar a mandola, enquanto pensava numa maneira de reformular a minha pergunta de uma maneira profissional, simpática e sensata:


“E quanto tempo por semana o senhor gostaria que eu trabalhasse aqui?”


“Você pode entrar e sair quando quiser, na hora que quiser. Eu posso te pagar por hora.”


“O que você acha dessa mandola, já está lixada o suficiente?”


“Não. Ainda tem uma manchinha de cola.”


Pois continuei esfregando a lixa na manchinha, até o momento em que os meus olhos cansados daquele dia todo já não sabiam se acusavam, ou não, o sumiço da manchinha. Mostrei para ele de novo:


“Não. Continue lixando até que a manchinha suma.”


Me veio à cabeça aquela cena do bom e velho Karate Kid, em que o senhor Miyagi instrui seu aprendiz Daniel-san a performar repetidas tarefas ad nauseam em vez de prontamente sair ensinando a arte do karate. Quem assistiu ao filme, lembra que Daniel-san não demorou muito a enfezar-se com essa repetição aparentemente sem sentido – mas foi bem quando eu já estava começando a me sentir da mesma forma que Paul, finalmente, pareceu dar-se por satisfeito com os meus esforços – de fato, seguindo as instruções dele, eu cheguei num resultado muito bonito, e pus-me a admirar a beleza da junção das madeiras naquele bandolim, feita absolutamente invisível por toda a lixação.


"O que você acha, agora?"


"Terrível..."


Gelei por um instante com a resposta dele.


"... terrivelmente bom."


Então, novamente desocupado, voltei minha atenção para o que Paul fazia. Notava-se que, apesar de demonstrar muita certeza no seu proceder, com uma mão direita decidida e precisa, Paul parecia frustrado e com alguma dificuldade motora na mão esquerda, como ele havia me dito.


“O senhor gostaria de uma ajuda?”

Ele pausou por um breve instante.


“Sim.”


E me entregou o tampo, e me explicou que eu precisaria usar um formão para remover as barras de sustentação (aquelas madeirinhas que correm por dentro do instrumento, dando mais resistência às finas paredes de madeira). Elas estavam coladas com uma cola muito forte e se eu tentasse simplesmente arrancá-las, correria o sério risco de trazer junto um pedaço do frágil abeto que fazia o tampo. A estratégia era, portanto, remover camada por camada das barras com aquela ferramenta extremamente afiada até chegar no nível do tampo – e, claro, tomando muito cuidado para não deixar o formão acertar o tampo, coisa que seria potencialmente fatal ao instrumento.


Dados alguns minutos, vendo que eu parecia estar me dando bem com o formão, Paul levantou-se e falou que ia comprar um café na esquina. Me deixou sozinho na oficina. Não passou muito tempo e o que eu mais temia aconteceu: o formão escapou da minha mão e empalou o tampo do bouzouki perto da boca (o buraco de onde sai o som). Em choque, pensei com os meus botões: foi um dia interessante, terei uma boa história para contar por aí. Que pena que não deu certo, quero dizer. Imaginei-me sendo chutado para fora daquela oficina tão logo Paul voltasse e visse a cagada que eu cometera. De todos os trabalhos que eu tentei hoje, esse seria de longe o mais interessante, o mais divertido e o mais satisfatório. Imagine só, aprender a fazer instrumentos musicais na Irlanda com um sujeito do naipe do Paul Doyle. Mas enfim, o que eu ia fazer? Continuei o trabalho, de qualquer maneira, já que o meu destino já parecia escrito – forrei o tampo do bouzouki com uma capa de revista velha que achei jogada no chão, para evitar mais acidentes e segui removendo as barras de madeira. Fui ficando meio chateado, confesso, sofrendo por antecipação pela possível reação de Paul com o meu erro – sabem, antes de vir para cá, trabalhei muitos anos em produtoras de cinema e televisão, como cameraman, assistente de câmera, primeiro assistente de direção e editor de vídeos, e, dada a cultura catastroficamente estressada, autoritária e muitas vezes desumana desses ambientes de trabalho aprendi a temer qualquer erro que não pudesse ser consertado imediatamente com um “ctrl - z”.





Paul voltou uns quinze minutos depois com um café e uma bomba de chocolate na mão:

“Ah, você ainda está aqui.” – ele pareceu surpreso com o fato de que eu não tinha aproveitado a sua ausência para ir embora. E, em seguida, me deu a bomba de chocolate, que foi a minha primeira refeição naquele dia desde o café da manhã. Muito receoso, mostrei a ele o meu acidente. Ele arregalou os olhos como uma coruja:


“Ohhhh o que você fez??”


Dentro da minha cabeça, todos os chefes que já me deram um calor por erros humanos levantaram de seus túmulos metafóricos, apanharam seus tacapes e prepararam para me açoitar por mais essa grande cagada. Mas eles logo se frustraram, pois a expressão de Paul rapidamente metamorfoseou-se em uma gargalhada.


“Se você não cometer erros, nunca vai saber consertá-los. Agora você vai ter que procurar pelo chão para achar o pedacinho de abeto que ficava nesse lugar que você furou, e depois a gente cola ele lá e lixa, e o buraco vai ficar invisível.”


Achar esse pedacinho me pareceu uma punição bastante cabível, dado que o chão estava forrado de lasquinhas de madeira e muita serragem. Mas eu achei. E depois descobri que aquele bouzouki não tinha dono, era um instrumento velho que estava lá, e que ele me deu para trabalhar como um teste das minhas habilidades – e vendo que eu solucionei o meu erro forrando o tampo, ele disse que gostou de ver que sou cuidadoso. Tempos depois, conversei com o Gustavo Lobão, nosso editor, que já trabalhou construindo gaitas de fole, e ele me disse que, trabalhando com as mãos, erros são inevitáveis, e faz parte a gente saber consertá-los e disfarçá-los. Meu caro leitor, você ficaria surpreso com a quantidade de ornamentos, decorações e idéias criativas que a gente encontra em instrumentos por aí que surgiram da necessidade de consertar uma cagada. Comparando isso com um trabalho de escritório como o que eu já tive em produtoras, me parece que os luthiers têm muito menos medo de errar porque têm muito mais prática de trabalhar com seus erros e transformá-los em acertos. A gente fica muito mimado com esse tal de “ctrl - z”. Mas algo no Paul me transmitia uma serenidade muito ímpar: como se ele também entendesse que é tudo um belo dum jogo e que não vale à pena perder a calma quando perdemos uma fase, da mesma forma como não vale à pena brigar com o amiguinho e ficar todo competitivo durante um jogo de War. Bom, ninguém trabalha com arte pelo dinheiro: a gente trabalha com arte porque a gente gosta do processo, do jogo que estamos jogando. A gente joga pelo prazer de jogar. E o Paul parecia entender isso – o que significa que mais vale à pena continuar jogando e encarar cada tropeço como um desafio novo, talvez uma side-quest que se interpela pelo nosso caminho que é, invariavelmente, irredutivelmente, indubitavelmente, imprevisível.


Outra coisa que me surpreendeu, comparando esse aos meus trabalhos anteriores: quando finalmente levantei-me e informei ao Paul que precisaria voltar para casa, ele olhou o relógio, calculou quantas horas eu havia estado lá ajudando ele, e me pagou o equivalente. Como artista ou artesão, nunca alguém havia insistido tanto em me pagar pelo meu trabalho antes, ainda mais no meu dia de teste.


“Quer dizer então que estou contratado?”


“Sim!” – ele me respondeu, novamente com aquela indignação bem humorada de quem não entende a necessidade de dizer abertamente algo que já havia ficado implícito.


“E como eu devo te chamar? Sr. Doyle?”


Paul deu uma gargalhada.


“Não! Meu nome é Paul!”


Quando retornei, no dia seguinte, achei que Paul me daria algo mais básico e seguro para fazer, dado o meu descuido com o tampo do bouzouki. Em vez disso, ele me entregou uma harpa e um desenho feito por uma cliente e pediu para que eu entalhasse aquele desenho no braço da harpa. Essas e outras histórias eu pretendo contar por aqui, então não percam os próximos eletrizantes capítulos do "Karate Irlandês", aqui no Pint Diário.


O entalhe nesta harpa foi o meu primeiro trabalho na luthieria, depois deste episódio.


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1 Comment


Guest
Jun 25, 2022

Parabéns Leo! Estou ansiosa pelos próximos capitulos!

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