"There was a young man who said though, it seems that I know that I know, but what I would like to see is the I that knows me when I know that I know that I know." – Alan Watts.
> 7am
O despertador toca.
Quem sou eu?
Meia hora pra abrir os olhos.
Meia hora pra me vestir.
Meia hora pra fazer o café da manhã.
Ovos.
E torrada.
Com Nutella.
Na trilha sonora, uma das playlists de trad d'O Pint Diário.
Muito café.
Muito frio.
Muito sono.
Quem sou eu?
> 9am
Botar os pés pra cima antes de sair pro trabalho.
Preciso pelo menos saber quem eu sou na hora de fazer aquele pitch esperto pros clientes da loja.
Aproveito a playlist e toco algumas tunes na flauta pra acordar os dedos e o cérebro.
Mais café.
Quem sou eu?
> 10am
Abro as portas do trabalho: uma icônica loja de roupas de trilha e aventura muito bem localizada no número 20 da High Street, principal rua de comércio em Galway City.
Há um novo vírus que assola a Irlanda e já alcançou proporções pandêmicas devastadoras. Alguns o apelidam carinhosamente de "landlords" – proprietários de imóveis, em bom português. Não se engane com o tom mundano da expressão, pois são um tipo diferente de criaturas, vis, cuja alma foi lentamente corroída por séculos de fortunas inertes azedando-lhes o bom senso e alienando-os do mundo dos humanos, e que andam enfiando a proverbial faca em pobres trabalhadores, como este flautista, com seus valores de aluguel risivelmente disparatados. Consequência última de uma série de desdobramentos históricos precipitados, este tipo de vírus representa o que se anda chamando internet afora de Crise Global do Custo de Vida.
Assim sendo, após trabalhar por quase um ano como luthier numa das mais célebres oficinas da Irlanda, precisei desistir das madeiras perfumadas para buscar um trabalho que me pagasse um pouco mais para que eu conseguisse absorver o impacto desta pandemia. Não sei muito bem porque fui chamado para trabalhar nessa loja, na verdade, pois esses lugares só costumam contratar pessoas com conhecimento na área. Suponho que deve ter sido por causa da minha experiência com documentários de natureza e do nome National Geographic que decora o meu modesto currículo, que de certa forma haveria de me ajudar a vender produtos. Entre os benefícios que recebo estão plano médico, valorização dos meus esforços e distâncias seguras de cadeiras e telas de computador. Se, no começo, meu chefe mostrava-se visivelmente desapontado com a minha falta de experiência em vendas, hoje ele abre. um sorriso de orelha a orelha (e às vezes me dá um abraço surpresa) toda vez que me vê, e insiste em me colocar no fronte de batalha da loja. É bom se sentir reconhecido de alguma forma, é bom saber que eu tenho um lugarzinho que eu conquistei – quem quer que esse eu seja.
Nossa capa de chuva mais barata, que só aguenta uma hora debaixo da garoa galwense, sai por ignóbeis 72 euros - e quem compra são as mesmas pessoas que me cobram 1000 por mês num quarto. Acho irônico e divertido, de alguma forma.
Por enquanto, nenhuma delas em vista.
O único som na rua é de um homem fazendo busking em frente à loja. O busking (a atividade de performar sua arte na rua em troca de gorjetas dos transeuntes) é bastante comum na Irlanda, e Galway é especialmente famosa pela cena musical da suas três ruas principais (que na verdade são a mesma), a Quay Street, a High Street e a Shop Street.
Your man, como aqui se referem a sujeitos familiares, está lá todos os dias, neste mesmo horário e neste mesmo canal, religiosamente entoando a plenos pulmões a sua seleção favorita de canções tradicionais.
Dirty Old Town.
Whiskey in the Jar.
Dublin In The Rare Ould Times.
Black Velvet Band.
Finnegan's Wake.
The Auld Triangle.
Four Green Fields.
From Clare To Here - uma das minhas favoritas.
"Você quase sabe a hora certa com base em que música ele está cantando" - comento com o meu chefe. Ele não está exatamente impressionado com a performance a capela do sujeito. De fato, your man não tem um rigor exatamente ortodoxo na afinação, e por vezes interrompe uma canção no primeiro verso para recomeçar num tom que lhe é mais confortável - mas sua performance cheia de verdade, trazida do fundo da alma de um irlandês que cresceu ouvindo essas músicas, coloca o temperamento igual em uma saudável perspectiva.
Dizem que ele só canta no inverno - e só quando lhe falta dinheiro para beber. Outras histórias afirmam que o dinheiro que ele recebe é só para o café da manhã mesmo. Pela freqüência com que o tenho visto, me parece que anda faltando bastante. Deve estar gastando tudo com aluguel. Mas eu também contribuo com trocados que carrego no bolso, frutos dos meus próprios buskings, que compartilho com outros profissionais da área.
Periodicamente ele dobra sutilmente os joelhos, e imediatamente ricocheteia-os de volta à posição inicial - a teoria do meu chefe é que se trata de uma dança. Talvez. Talvez seja timidez. Talvez seja o frio.
"Quanto será que ele ganha?" - pergunta o meu chefe.
"Deve valer à pena, pra ele estar aí toda manhã, nesse frio. Ou então ele tem problemas sérios." - especulo.
"Isso ele tem com certeza." - meu chefe é particularmente ácido em suas críticas a alguns buskers. Eu, pessoalmente, não faria tal crítica, assim, com tanta leveza e tranquilidade. Flautista que sou, sei do nível de coragem e persistência que a gente precisa para tocar na rua solo, tanto menor e tanto mais quieto é o nosso instrumento. Difícil de aguentar, mesmo, é o sujeito que de vez em quando resolve passar uma semana inteira, sem parar, na frente da loja tocando o mesmo tema do Poderoso Chefão, em loop, num acordeão tristemente desafinado. Ou o bêbado que usa um chapéu em formato de morango e assedia um pobre fiddle com arranhões de um arco áspero muito mal orientado – isto é, quando ele consegue parar de pé e segurar o instrumento.
Este cantor matinal não é nada mal, então.
Ele não canta alto.
Mas ele está lá, todos os dias, cantando suas canções.
Quem sou eu para criticar?
Quem sou eu?
Eu sou o homem que etiqueta blusas e pendura elas pala loja, caçando alguma lucidez pelo seu cérebro ainda entorpecido de melatonina. Sabe quando você inicializa o computador em modo de segurança, e tem alguns dos softwares básicos operantes, mas com aquela clara sensação de que está faltando alguém ali dentro?
> 12am
A atmosfera onírica da manhã, brilhantemente comentada pelo cantor solo, é substituída por um crescente frenesi de compradores assíduos buscando meias à prova d'água, capas de chuva com e sem isolamento térmico, luvas, botas, com gore-tex, sem gore-tex, porque gore-tex é muito caro, pois é sinto muito é só isso que temos no momento, os gorros ficam na frente da loja, não posso dar desconto, calças para chuva, botas de neoprene para nadar no mar, os gorros que vocês têm são só esses mesmo? As pessoas aqui nadam com frequência no inverno.
"Bom dia, senhor, posso te ajudar com alguma coisa?"
"Sim! Eu sou tamanho 11."
"..."
Um grupo de trad enche a loja com um som animado e efusivo, liderados por Theo Bowyer, um jovem banjoísta irlandês com um sotaque peculiarmente franco-inglês que tem o talento nato de agenciar músicos e organizar gigs, sessions, e buskers. No acordeão temos mestre Flór, enérgico acordeonista, de som cheio e notas precisas – no violão, um jovem americano chamado Cullen Vance que, como este que vos escreve, cruzou o Atlântico com sua esposa em busca de qualidade de vida e música irlandesa.
"Você é um ótimo produtor" - eu disse, certa feita, a Theo.
"Eu sou um produtor ok. É que a minha concorrência são outros músicos, então eu acabo me sobressaindo." - ele retrucou no seu típico tom sarcástico.
A performance efusiva parece despertar a High Street e alguns dos profissionais que lá trabalham. Uma das grandes vantagens de se trabalhar nessa loja é que ela fica bem de frente para um dos melhores e mais acusticamente favoráveis pontos de busking da cidade, estragado apenas pelo medonho painel luminoso que repete os mesmos videos publicitários da loja em frente.
"GALWAY!" - do fundo da loja, ouço o Theo anunciar para seus colegas músicos que a próxima tune será no tom de sol.
"ENNIS!" - ele anuncia, então, uma próxima em mi menor.
"DUBLIN!" - e fecha o set com algo em ré maior.
Entenderam o código?
Na verdade, aprendi que aqui raramente menciona-se se um tom será maior ou menor. Assume-se o mais usual (mi e si costumam ser menor, ré e sol costumam ser maior, etc), a menos que o contrário seja salientado.
Conta-se que foi mestre Bowyer que começou a espalhar esta tendência de anunciar os tons dessa forma pelas sessions de Galway - e ela chegou inclusive no Crane Bar, um dos mais tradicionais da cidade, que raramente é frequentado por Theo e seus parceiros. Entre pints de Guinness, o host do Crane, Michael Chang, já deixou escapar um "GALWAY" entre tunes lançando-nos um sorriso maroto por sabermos da origem do meme.
"Isso é coisa do Theo, ninguém mais faz isso."
Enquanto passo compras no caixa, imprimo recibos e empacoto capas de chuva, assobio animadamente as tunes que viajam do grupo do Theo até meus ouvidos desejosos. Na verdade, os clientes não conseguem ver, mas eu também danço um pouco atrás do balcão.
A gerente aproxima-se de mim com ar de quem tem algo importante para me dizer:
“Leo, você tem 15 minutos de intervalo para tirar, quer ir agora que a loja está ficando um pouco mais tranquila?”
Com a jaqueta ainda mal colocada, cuspo-me para fora da loja em direção aos músicos.
“Junte-se a nós!” – eles me convidam. Tragicamente, estou sem flauta.
“Putz, também não trouxemos nenhuma whistle hoje, se não te emprestaríamos.”
Meu olhar ansiosamente cafeinado encontra a vitrine da loja de instrumentos musicais da rua – na típica velocidade com que um vendedor analisa uma situação e resolve-a eficientemente com uma transação financeira, adquiro uma Féadog por 5 euros, preço de um pint de Guinness, para acompanhar meus parceiros nas suas tunes pelos próximos dois ou três sets. A whistle deixa a desejar, soa como se cada buraco fosse capaz de produzir três notas diferentes ao mesmo tempo – apesar disso, minha empreitada é razoavelmente bem sucedida na medida em que proporciona uns bons 10 minutos de craic, e eles me convidam para participar do busking que vão fazer naquele sábado às 13h.
Retorno ao trabalho com a leve sensação de que logo mais eu saberei quem eu sou.
> 2pm
O grupo do Theo dá lugar a um jovem gaiteiro que sempre tem um cigarro aceso na boca e toca algumas seletas notas pouco menos de meio tom abaixo do esperado. O feeling, a paixão, porém, são irredutíveis. Não sei o nome dele e nunca trocamos idéia, mas sei que quando ele aparece com suas uilleann pipes na frente da loja, ele não sairá tão logo.
Enquanto assobio uma tune que estou tentando aprender de ouvido com o gaiteiro, penduro uma série de jaquetas novas que acabamos de receber da fábrica, quando um cliente me aborda:
"Você tem essas botas no tamanho 9?"
Deixo minha tune e meus casacos esperando e desço até a sala de estoque para buscar as botas - mas neste ínterim olho o monitor das câmeras de segurança e vejo que um cliente está no caixa esperando para pagar sua compra.
"Olá senhor, como vai o seu dia?"
"Muito frio!"
"Pois você veio ao lugar certo! Vai levar só tudo isso?"
"Só, muito obrigado"
"Sai cento e sessenta euros, obrigado. Vai pagar com dinheiro o cartão?"
"Cartão."
"A maquininha está logo ali. Você quer o seu recibo?"
"Sim, por favor."
"Tenha um ótimo dia!"
Volto para a sala de estoque, apanho as botas tamanho 9 e retorno à sessão de sapatos, sem ter a menor lembrança de quem pediu elas - e apresento-me à sessão de calçados na sincera esperança de que alguém vai me ver com uma caixa de sapatos na mão e dizer, ah obrigado!
Geralmente é o que acontece.
O cliente nem prova: “tenho outro par igual e só estou querendo repor, então vou levar.” Passo a compra no caixa e, em seguida, sou abordado por um típico cliente que traz uma devolução: este tipo entra na loja sempre carregando uma sacola de compras meio puída erguida à altura do peito e caminha diretamente para o caixa, com uma certa cara de cachorro que quebrou a panela.
"Eu comprei essas botas há quase um ano atrás aqui. Disseram que ela é à prova d'água, mas eu usei apenas uma vez e ela encharcou toda." – diz o cliente me mostrando um par de botas puídas que notadamente foi usada múltiplas vezes e posta para secar em cima de um radiador ou na frente do fogo, o que provavelmente ocasionou a danificação da membrana impermeável.
Sem rodeios e sem tentar argumentar a frágil narrativa, tomo os calçados da mão do cliente e informo-lhe que vamos enviar para a avaliação da fábrica e devolver o dinheiro se for constatado um defeito de fabricação. O sujeito, que claramente veio com um discurso pronto, fica meio surpreso e meio frustrado por não ter precisado usar sua munição.
Minha gerente passa em frente ao caixa:
"Você anotou o nome e telefone dele na nota fiscal?"
"Putz, esqueci!"
"Você lembra do nome dele, pelo menos?"
"Rapaz, eu não lembro nem do meu."
Retorno aos casacos que eu pendurava.
O gaiteiro toca Lark In The Morning, e eu cantarolo junto.
Ainda não sei quem eu sou.
> 3pm
Hora do almoço.
No restaurante chinês do lado da loja.
"Small noodle box with beef, please."
"Para aqui ou para levar?"
"Para aqui, obrigado."
“7 euros por favor.”
Não é o arroz com feijão e bife da minha avó, mas cumpre a função de um almoço rápido, razoavelmente barato e não totalmente desprovido de valor nutricional.
Como em meia hora.
Bebo uma jarra d'água de 1,5L em 15min.
Tomo um expresso duplo em 10. Na Irlanda, o expresso é só um breve cuspe preto que esfria assim que encosta na xícara - por isso o duplo.
Uma hora depois, estou de volta à loja e o gaiteiro continua tocando suas tunes sutilmente desafinadas e fumando seu cigarro.
> 4pm
A loja está às moscas.
Aproveito para ir ao banheiro e me surpreendo com uma mensagem de um certo figurão do trad no meu Instagram. Um certo bodhráni que fotografei recentemente e parece ter apreciado meu trabalho.
Bom momento para botar a conversa em dia com os outros parceiros de vendas.
Tristan, um rapaz de seus vinte e poucos anos, me conta que recentemente converteu seu violão folk em um 12-cordas.
"Mas você reforçou a estrutura interna?"
"Não, só fiz mais 6 furos no headstock e na ponte e acrescentei mais 6 cordas."
Não me parece promissor.
"Fica de olho nesse violão pelos próximos meses, vê se o braço não vai empenar ou se – Boa tarde, senhor, como vai?" - quase ao mesmo tempo, cumprimentamos um cliente perdido que começa a experimentar as jaquetas da sessão feminina. Faz parte do software de piloto automático que a gente aprende a rodar, cumprimentar todos os clientes com um sorriso, conforme orientações da chefia – comportamento esse que, automatizado como está, muitas vezes interpela-se no meio de qualquer fala que estaríamos conduzindo. Às vezes a gente cumprimenta os próprios vendedores por distração.
"Vou tocar no Crane hoje, tem a session dos universitários. Quer colar lá?" - Tristan me pergunta.
"Rapaz, hoje eu toco na session do 13 On The Green, 21h30."
“Qual é o 13 On The Green?” – me pergunta Chris, grande parceiro de vendas que, do alto dos seus 44 anos, conhece Galway em seus mínimos detalhes, tão bem quanto cada um dos produtos que vendemos na loja. Chris, como muitos irlandeses, não gosta de trad, mas tocou tin whistle na escola. Ele foi dançarino profissional anos atrás. Também foi engenheiro e técnico de ar condicionados, e hoje é uma lenda viva do retail, explicando e vendendo produtos com a vivacidade e criatividade de quem faz rimas numa competição de repente, movido a duas latas de RedBull e um maço de cigarros por dia.
“É o que costumava chamar Garvey’s. Mudaram o nome recentemente, não sei porquê.”
“Ah sim, era uma família de mulheres, as Garveys. Faz sentido, se eu vendesse o meu pub também ia querer que tirassem meu nome da porta.”
"Quem é o host?" – me pergunta Tristan.
"Você conhece o Theo Bowyer?"
"Não, eu sou de Dublin."
> 5h30pm
Está absolutamente escuro lá fora.
Parece meia noite.
Frio que nem a peste.
O ar condicionado começa a falhar e pára de aquecer a loja.
"O inversor e o condensador desse aparelho não suporta esse frio, ele pára de funcionar mesmo." – me explica o Chris.
Chove de leve.
"Você acha que vai chover amanhã?" – pergunta-me um turista americano.
"Você está na Irlanda, meu senhor, é lógico que vai chover."
Um homem se prostra em frente à loja, tira um banjo e começa a cantar suas próprias iterações de Wild Rover, Finnegan's Wake, Rocky Road To Dublin… Seu nome é Robin: originalmente da Holanda, ele vive em Galway e faz do busking seu trabalho de período integral. Ele não se importa de tocar debaixo da chuva.
"Você gosta desse tipo de música?" - me pergunta o Tristan.
"Ué, ce não sabe que eu toco trad?"
"Sei, mas isso não é trad. Isso são ballads. Isso é o que a gente ouve mais em Dublin. Muito difícil achar trad por lá. Inclusive, agora que moro em Galway quero frequentar mais sessions pra aprender a tocar trad."
"Cola no Crane de sábado a noite. Bom lugar pra você ir pegando as tunes no violão. Sempre tem algum violonista muito bom lá pra você ir copiando e aprendendo."
Clientes que acabaram de sair do trabalho começam a entrar na loja. Um deles fala irlandês, e põe-se a trocar a maior idéia com o Tristan, que faz faculdade de ciências políticas e língua irlandesa. Ou era história?
Nos melhores dias da loja, o movimento dos clientes é curiosamente parecido com o das ondas do mar. Você vê claramente a loja enchendo, como a água da praia que vai recuando aos poucos e se concentrando alguns metros para trás, preparando uma onda - que vai crescendo, inchando, subindo - e os clientes vão buscando, provando, ponderando, se multiplicando. E então, quando um deles se encaminha para o caixa, parece que o piloto automático de todos os instrui a fazer o mesmo. Me lembra um pouco aquela situação no metrô, em que você tem duas catracas cheias e uma vazia, mas todo mundo prefere entrar na fila em vez de aproveitar a vazia - até alguém se dar conta e passar por ela, e só aí todo mundo se sente no direito de ir atrás. E então, se você dá a sorte de estar no caixa na hora em que a onda quebra, é a maior adrenalina: uma venda atrás da outra, a parte mais divertida e emocionante do joguinho que é trabalhar em uma loja de roupas. Isso ao som de bons buskers é um daqueles proverbiais pequenos prazeres da vida – enquanto me acho absorto nesse jogo, alguns clientes resmungam sobre o fardo que é comprar presentes para o sogro, para os netos, para a filha. Ao final do último cliente da onda, ocorre-me que eu estou mais feliz do que qualquer um daqueles que acabei de atender – fico com aquele sentimento da endorfina enchendo as veias, esperando que a próxima onda se forme para pegá-la também.
O flow é real. Se não é um trabalho que me remunera pelos meus esforços artísticos, pelo menos ele me permite cantar as tunes dentro da minha cabeça e me deixar levar pelos fluxos musicais que fazem a atmosfera de Galway ser tão viva, tão leve, tão única. Por um breve momento, é quase como se não importasse eu não saber quem eu sou ainda.
> 6pm
Fecham-se as portas da loja.
> 6h30pm
Academia.
Correr na esteira até acabar o estoque de suor.
Correr na batida da música é uma forma prática de manter o treino interessante, dinâmico e não me distrair demais. Apesar da minha playlist de hard rock dos anos 80 soar mais apropriada para a ocasião, confesso para vocês que os bpms que mais fizeram este escritor suar foram os do mestre Brian Finnegan e sua coleção de whistles furiosas.
Repetidas vezes, levanto objetos pesados e imediatamente retorno-os de volta no chão. Ajuda o ombro e o cotovelo a não doerem demais com a flauta.
> 8pm
Lanche rápido no Supermac’s. É tipo um McDonald’s, mas irlandês – praticamente o mesmo preço, e a comida parece ser mais de verdade e feita com mais amor.
> 8h30pm
Tomar um pint no Sally Longs, único pub de rock da cidade, ouvindo só sonzeira e escrevendo para O Pint Diário.
Um australiano levemente ébrio me ouve pedindo meu pint e puxa um papo, demonstrando que já mora por aqui a tempo suficiente para absorver e incorporar os hábitos locais.
"De onde é o seu sotaque?" ele me pergunta.
"Eu sou brasileiro, mas morei um tempo na Nova Zelândia."
"Ah, percebi algo familiar ali! E o que te trouxe lá de baixo até essas terras frias e chuvosas?"
"A música, meu bom senhor, a música!"
> 9h30pm
A session do antigo Garvey's Pub, hoje conhecido pelo menos memorável nome "Thirteen On The Green", é tradicional das segundas e terças em Galway desde que foi criada há mais de 10 anos pelo Ciarán do bouzouki, pelo Valentin do bodhrán e flauta, pelo Colin do bandolim e por ninguém menos do que nossa amiga Ana Cardon do fiddle, que à época morava por aqui.
Session às segundas e terças?
Meus amigos, Galway tem sessions todos os dias da semana em múltiplos pubs e múltiplos horários. Mesmo na Irlanda isso não é assim tão comum - como lhes contava mais cedo, meu parceiro de trabalho me contou que até em Dublin não é tão fácil achar sessions assim.
Outrossim, diz-se que as sessions de segundas e terças costumam ser as mais interessantes.
Suponho que seja nesses dias que os músicos, que andavam trabalhando desde quinta ou sexta à noite, aproveitam o começo da semana para baterem uma bolinha entre si.
Menos turistas, também, algo que a gente aprende a apreciar depois de um ano tocando nas sessions de fim. de semana. Não me entendam mal, é um sentimento muito bacana ver aquela galera do mundo todo maravilhada com a força, a energia e a orgulhosa autenticidade da música tradicional irlandesa coroando suas férias na Ilha Esmeralda - mas certas nações produzem indivíduos tão amplificados (especialmente quando tentam acompanhar os hábitos alcoólicos dos irlandeses) que muitas vezes torna-se virtualmente impossível se ouvir direito. Na verdade, aos sábados, no The Crane Bar, eu toco apenas uma fração das tunes que eu toco nas terças, mas saio dez vezes mais exausto.
Registro feito por Marcos Amaral, músico brasileiro que visitou Galway no ano passado e veio assistir à session.
Ao longo da história da session do 13, alguns dos hosts ausentaram-se, como nossa querida Ana e mesmo o bodhrani e flautista Valentin, que voltou à Espanha, sua terra natal. Ao mesmo tempo, novos instrumentistas surgiram cheios de empolgação e entusiasmo. Um deles foi o Theo, que segundo a Ana testou todos os instrumentos em seus primeiros anos de trad, movido pela irredutível vontade de tocar tunes - finalmente, ele encontrou-se no o banjo tenor e logo conquistou uma das cadeiras de host da session do Garvey's. Cineasta de formação, professor de dança e músico em período integral, Theo tem um jeito muito próprio de organizar os instrumentistas presentes ao redor da mesa de forma a otimizar a distribuição do som, algo que eu não havia visto até hoje em nenhuma outra session. Antes de dar início ao primeiro set, ele coloca um copo vazio na ponta da mesa com uma plaquinha que diz "gorjetas para músicos famintos", e pergunta para cada um de nós o que gostaríamos de beber na primeira rodada por conta da casa.
E enquanto os barmans correm para encher todos aqueles pints de Guinness, Theo começa a bolar o primeiro set da noite.
"Trouxe a whistle em dó?" – ele me pergunta, sabendo da minha notória preguiça de carregar muitos instrumentos.
"Trouxe a minha favorita!" – eu lhe digo mostrando uma whistle com uma cabeça desproporcionalmente grande sobre um corpo de aspecto bastante ordinário. – "Isso é um corpo de Féadog. A cabeça de plástico estava rachada, e eu troquei por essa de alumínio que um luthier brasileiro fez pra mim. É uma frankenwhistle."
Digo a vocês que as sessions dele são as únicas da cidade em que até a mesa mais longínqua do pub fica sabendo qual será o tom da próxima tune -
"DUBLIN MINOR!"
Montamos um set que começa com o reel "A Lovely Madness", em ré menor, que o Theo me mostrou e eu tirei – seguida de "Glass Island", em mi menor, que ele me mostrou e eu tirei. Duas composições bem modernas e bem... menores. Theo não gosta muito de tunes em tons maiores. Ele diz que o banjo já é um instrumento feliz o suficiente e que prefere quebrar um pouco essa impressão com tons menores.
"Ennis!"
Cada session tem seu próprio espectro de repertório de onde costumam sair as tunes que são tocadas. Claro que isso não é uma regra, mas uma consequência de termos sempre mais ou menos os mesmos frequentadores preferenciais de cada session, cada um trazendo para a mesa o seu repertório próprio. Eu diria que a session do 13 costuma reunir um público mais jovem e não necessariamente tão veterano de guerra, e por isso costumamos abraçar um pouco mais o repertório "carne de vaca", que sempre fazem os principiantes se sentirem acolhidos e bem vindos - tunes como Morrison's, The Kesh, Out On The Ocean, Cooley's, etc. Lógico que tudo tem limite:
"Vocês tocam alguma polka?" - pergunta algum frequentador local.
Theo olha para mim, como se esperando que eu tirasse alguma coisa do chapéu.
"Só conheço uma."
"Qual?"
"A que não se deve nomear."
"Ah. Sim. Essas tunes que tocam em filmes."
“Qual?” – pergunta um músico que ainda não entendeu a referência.
"Sempre que o nome dela é dito alguém começa a puxar, e isso não tem fim."
Theo e todo seu charme musical.
Theo afasta o banjo do corpo e olha para o fundo do instrumento, como se estivesse lendo algo lá, e brinca:
“Bom, de acordo com o manual oficial das sessions, que eu tenho aqui, nós acabamos de tocar reels, então é necessário que agora toquemos jigs.” – conclui Theo. Ele sempre faz essa piada.
Os vídeos aqui exibidos são meramente ilustrativos e não refletem os sets descritos nesta crônica.
O banjoísta coordena a roda de músicos de forma que cada um de nós tem a chance de puxar um set. Agora era a minha vez.
As tunes carne de vaca sempre são legais para deixar na manga e finalizar um set, principalmente quando as duas primeiras tunes são menos conhecidas. Gosto de começar com algo que chame a atenção, amarre todo mundo junto e empolgue - algo como a Father O'Flynn jig, que aprendi de tanto ouvir tocarem no Crane. Não é, portanto, uma das tunes mais tradicionais dessa session específica, mas o assíduo frequentador das sessions de Galway com certeza também consegue acompanhá-la minimamente, ainda que precise esperar uma ou duas rodadas para fazer aquele buffer mental da tune. Por isso repito ela umas 4 vezes para ter certeza de que estamos todos na mesma página e levo o set para a Cliffs Of Moher, outra jig que aprendi no Crane mas que sempre dá quórum máximo aqui no 13, e acabo segurando ela por umas 4 rodadas também. Peguei esse hábito com o Michael, host do Crane e grande fiddler do Baile An Salsa, que notoriamente repete tunes por 4, 5, 6, 7 vezes até, com uma formidável sensibilidade para seguir repetindo enquanto todos continuam empolgados com a tune, e trocá-la assim que ela termina de cumprir o seu papel. Termino o set com Jimmy Ward's, 3 vezes apenas, fechando um set inteiramente tirado ao vivo no Crane bar, que se provou perfeitamente cabível por essas bandas.
Registro feito pelo nosso editor Gustavo Lobão. Não sou o único brasileiro a frequentar a session do Garvey's: aqui vemos meu grande parceiro Felipe Tupã, que no passado foi bandolinista e banjoísta da finada Harmundi.
A roda anda, e chegamos no bodhrani/flautista Valentin, um dos OGs que começou essa session lá atrás - ele está de volta a Galway e agora torna a hostear o 13 regularmente. Valentin tem um set especial que ele pede para que todos participem. Ele coloca um lindo gravador de som sobre a mesa e nos diz que se trata do áudio guia para um vídeo que ele está fazendo, sobre essa que é a sua session mais querida. O set começa com Dunmore Lasses, um reel que eu não conheço, mas que participo com algumas notas longas que buscam não conflitar com a harmonia que está sendo criada em tempo real pelo Ryan, no violão, e pelo Ciarán no bouzouki - ocupando-se, respectivamente dos graves e dos agudos. Seguimos então para Man Of The House, uma dessas tunes que o frequentador das sessions Paulistanas provavelmente tem guardado na memória emocional por ter sido tão lindamente popularizada pelos amigos da Oran. Para finalizar, a retumbante Road To Errogie, que traz um aftertaste épico para essa carinhosa combinação de tunes.
Tupã empresta seu bandolim para Theo.
Além das carnes de vaca e das tradicionais que todos conhecemos, essa session é particularmente dada a algumas composições modernas - algumas que são absolutamente desconhecidos em outras sessions da cidade, mas aqui são praticamente necessárias.
"Um set de saideira?" - Theo pergunta, olhando para mim.
"O que você tem em mente?" - respondo.
"Alguma coisa com Superfly."
"Manda um superset pra terminar" - acrescenta outro dos músicos.
"Às ordens, meu bom senhor."
Os barmans começam a fechar as cortinas do pub, trancam a porta principal e piscam as luzes do bar, indicando que suas atividades estão se encerrando.
McCarthur's Road, em mi maior. Só quem tem instrumento cromático toca.
O set começa chamando a atenção com a popular Earl’s Chair e, estando todos então na mesma página, puxo em seguida a bela e exótica Frank's Reel, uma tune tradicional que aprendi com a Ana Cardon e seu marido Bardán, numa certa vez estiveram em Galway e foram convidados pelo Theo para hostear a session que começaram tanto tempo atrás. Seguro a vontade de repeti-la uma quarta vez para poupar um pouquinho o meu pobre ombro esquerdo. A próxima é Trip To Durrow, o que em si já daria um belíssimo set para finalizar a session. Mas acho que podemos ir além, e então levanto a bola com The Golden Stud, 3 vezes, e corto - finalmente - com a sensacional Superfly.
Vídeo feito por Valentim em homenagem a Galway e à sua session favorita.
> 00h00am
Abro os olhos.
Quem sou eu?
Continuo buscando a resposta para essa pergunta, mas cada vez mais com a sensação de que é a própria busca que me afasta da resposta. Se não a tenho neste momento, é como se pelas últimas horas isso sequer fosse uma questão, absorto que estava na noite de craic. É como se, em não estando preocupado em saber quem eu sou, eu sabia – ainda que apenas e tão-somente por aqueles momentos em que eu estava de olhos fechados, tomado e levado pelas tunes, flutuando pela gentil e enérgica correnteza das águas de um rio musical. Venho a notar isso depois que o momento já passou – como se, no furor de saber quem eu sou, não tinha ninguém presente aqui dentro para tomar nota e registrar exatamente o que está acontecendo, o que que me faz saber e o que esse saber significa. Me parece que é só quando torno a me ocupar deliberadamente dessa pergunta que eu não tenho a resposta para ela. O que levanta a questão: se esse eu que toma notas não estava presente quando eu sabia quem eu sou, será que ele sou eu? Quando eu me pergunto "quem sou eu", afinal de contas, que tipo de resposta eu estou buscando? Dizia o filósofo Alan Watts, "me parece que eu sei que sei, mas o que eu queria ver é esse eu que me reconhece quando eu sei que eu sei que eu sei."
Talvez seja exatamente esse alívio existencial, não de saber quem eu sou, mas de momentaneamente parar de se preocupar com a resposta, que motiva imigrantes e locais a darem suas últimas gotas de energia numa terça feira e fecharem a noite com tunes de ouro.
“Obrigado pelas tunes!” – assim despedimo-nos ao final da noite.
Valeu cada segundo ler esta cronica!