Foi no ano do Senhor de 2013, quando uma certa banda paulistana de música Irlandesa resolveu dar um salto ousado e partir por algumas semanas para uma experiência em um dos maiores e mais importantes festivais da Europa e é dedicado à música tradicional dos países celtas, o Festival Interceltique de Lorient, na Bretanha, região no noroeste da França.
O Festival acontece desde 1970, dura cerca de 10 dias e tem MUITA coisa acontecendo!
Falaremos mais do Festival em outros artigos e, quem sabe, alguma cobertura em próximas edições (você pode ajudar o projeto clicando no botão Doar, na página inicial)
O Oran (este que vos fala, Mila Maia, Danny Littwin e Fernanda Koschtschak) partiu em direção à França inscrito para concorrer ao Trophée de Musique Celtique Loïc Raison, troféu que já esteve nas mãos de Deanta e Danú. Levávamos na bagagem as nossas experiências com música irlandesa e música brasileira. Mas não é sobre esse concurso que eu quero contar…
Obviamente não iríamos estar lá com tanta coisa rolando só pra participar do concurso, chegamos duas semanas antes do festival e alguns dos membros do grupo estavam inscritos em um curso de música bretã que ia rolar nessas semanas, mas para mim o curso não apresentava grandes opções, então o Tony, nosso anfitrião, mexeu os pauzinhos dele e arranjou que eu tocasse com uma banda no festival. Até aí tudo bem, eu ia ensaiar nessas duas semanas e depois ia ver como corria. O que eu não tinha muita noção era da proporção da coisa.
Eu fui um dos músicos internacionais convidados pela Kevrenn Alré, uma bagad, para competir na primeira categoria do Championnat de Bretagne des Bagadoù.
Vamos explicar isso. Bagad é o nome que os bretões dão às suas bandas marciais. Geralmente as bagadoù (plural de bagad) são formadas de gaitas de foles, geralmente as escocesas; bombardas, que são um precursor do oboé; caixas e bombos e mais algumas coisinhas, o céu é o limite aqui.
A Kevrenn Alré é mais do que só uma bagad, é uma Kevrenn, basicamente uma bagad com um corpo de baile associado, é da cidade de Auray (Alré em Bretão) e é uma das bagadoù mais importantes da bretanha, foi criada em 1951, já viajou o mundo, tocou no palco do Carnegie Hall com os Chieftains e foi campeã do campeonato seis vezes, ficando perto disso muitas outras vezes.
Além da instrumentação habitual, a Kevrenn Alré tem um naipe de clarinetes! Confesso que quando vi 6 clarinetes tentando competir em sonoridade com 8 caixas, 8 percussionistas (eu entre eles), 11 gaitas escocesas e nada menos do que 20 bombardas (!), achei que não ia funcionar e que eles seriam facilmente engolidos pela enxurrada sonora, mas os arranjos são tão bem feitos que não deixam nada desaparecer e os clarinetes são uma das coisas que fazem essa banda ser tão especial. Agora, não sei se vocês fizeram bem as contas. 53 músicos, mais o maestro (que na verdade foram 3, se intercalando no naipe de bombardas), e ainda alguns outros gaiteiros que entravam só pra fazer umas pequenas participações especiais. É muita gente!
Mas eu não me dei conta disso tudo no
começo. Os primeiros ensaios que eu participei eram só com os percussionistas, e nem éramos todos. Criamos juntos algumas partes e definimos mais ou menos como seria a minha participação, eles já tinham partes escritas para surdo e congas, que desenvolvemos um pouco melhor, e eu trouxe o pandeiro brasileiro para o molho. Além de mim, os convidados internacionais eram um gaiteiro americano, que eu só conheci em um dos últimos ensaios, e um percussionista chamado Nathan, que vinha da Ilha da Reunião, uma pequena ilha no meio do oceano índico que é território francês. Ele adicionou o caïamb, um instrumento de percussão que é tipo um grande chocalho quadrado, usado na música tradicional Maloya, (não tenho fotos dele tocando caïamb, mas da pra ver no vídeo lá em baixo) se você ficou curioso, dá uma olhada no som do Saodaj’, o grupo dele no Youtube ou no Spotify
Os ensaios eram longos e diários, mas foram muito divertidos! Aos poucos fui entendendo que a peça que apresentaríamos no campeonato era uma composição única mas com várias partes de ritmos distintos. A coisa ficou mais clara quando os ensaios passaram a ser em um sítio gracinha em Brech, lá estava a galera toda e terminava em churrasco e incontáveis garrafas de vinho. Mesmo usando protetores auriculares, meus melhores amigos, eu ia dormir todos os dias ouvindo as bombardas e as caixas como se estivessem no meu quarto!
Antes da competição, é tradição do grupo fazer vários ensaios abertos ao público, tanto em Auray quanto em Lorient, além de participar durante o festival na Nuit Celtique, um espetáculo com representantes de todas as nações no Estádio Municipal, e da Grand Parade, a parada que percorre a cidade toda! Haja disposição!!
A competição rolou no estádio cheio, entramos junto a gritos de incentivo dos integrantes, uma mesa comprida de juízes na nossa frente, parecia que estávamos indo para uma batalha!
Foram aproximadamente 12 minutos de música, vividos intensamente a cada pulso. As melodias das bombardas, as contra melodias das gaitas, as harmonias dos clarinetes e das bombardas mais graves, o entra e sai dos bordões, os bombos fazendo linha de baixo, as frases cheias de expressividade das caixas, surdos marcando, mais de 50 pessoas pulsando juntas!
Eu me emociono até hoje todas as vezes que assisto essa performance, e a cada vez descubro coisas que não tinha notado antes!
Quem acabou levando o primeiro lugar aquele ano foi a Bagad Kemper, e muito merecidamente. Nós ficamos em terceiro, anunciado alguns dias depois na praça principal da cidade. Alguns dos meus colegas ficaram tristes, outros frustrados. Mas eu estava radiante e me lembro desses dias com muito carinho e gratidão!
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