Rique Meirelles é desses artistas capazes de assimilar com admirável proficiência uma linguagem musical, temperá-la com sua própria constelação de inferências e dela produzir extratos singulares que compõem um projeto autoral suis generis. Ele é um fiddler de presença marcante em Irish sessions do Rio de Janeiro, e toca na banda carioca de música tradicional irlandesa Café Irlanda. Mas aqui, quero aproveitar o lançamento de "Moongardener", novo EP do seu projeto solo, "Wings & Horns", para mostrar um pouco das possibilidades de derivação e construção em cima do estilo trad.
Além do fiddle, Rique também é especialista em um instrumento bem mais incomum, até mesmo dentro do universo da música irlandesa: o hurdy gurdy – também conhecido como viela de roda. Oxalá que, em breve, ele nos fale um pouco mais sobre este "ornitorrinco musical" que anda encantando cada vez mais jovens da "cena folk" mundial. Trata-se de um parente do violino, em que as cordas são friccionadas por uma roda, que é girada por uma manivela – que abre todo um leque próprio de possibilidades expressivas. As cordas também não são pressionadas com os dedos para produzir notas diferentes, e sim por um mecanismo de teclas. O timbre, pelo menos na minha percepção, está entre o de um violoncelo e uma gaita de foles, mas localizado em alguma dimensão paralela em que as coisas são um pouco mais surpreendentes ainda. Tem parecido ser um dos maiores objetos de estudo de mestre Meirelles, que inclusive mantém um fantástico canal youtúbico sobre o instrumento – com dicas, ensinamentos e entrevistas com grandes titãs da jovem guarda folk mundial, como a suíça Anna Murphy (ex-Eluveitie e fundadora da banda de folk metal Cellar Darling). No vídeo abaixo ele mostra um pouco do hurdy gurdy e responde perguntas feitas por brasileiros sobre o instrumento:
"Musica imaginária/Folk-fantasia de um lugar desconhecido, mas repleta de misticismo e mistério; tocada e gravada no Rio de Janeiro. Com influência de tradições européias, pop, música clássica, tradições orais e lendas, os sons únicos de Wings & Horns tem uma coisa em comum: a viela de roda de Rique Meirelles, uma das poucas existentes hoje no Brasil." Assim descreve seu projeto solo o próprio Rique, com quem aliás tive o prazer de tocar em uma session do Rio. "Com seu novo trabalho, o EP intitulado Moongardener, o Wings & Horns traz canções inéditas mais uma vez inspiradas pelos mais diversos elementos, que vão de refrões aprendidos em sonhos; a um lamento em violino solo e à sinergia épica do hurdy-gurdy com percussões. Moongardener traz seis faixas que nos fazem viajar por línguas como o português, o inglês e mesmo o tupi antigo, presente na épica faixa Marakaîakyrirî, dedicada aos índios que habitavam a Guanabara pré-colônia."
Uma vez ouvi do multi-instrumentista, compositor e maestro Fabio Cardia uma explicação para o termo "world music" que chegou até a destorcer um pouco o meu nariz para esse tipo de guarda-chuva com que a indústria fonográfica nos brinda de vez em quando. Ele falou deste fenômeno que andamos vendo cada vez mais pelo mundo, de gêneros musicais se influenciando, se misturando e se retro-alimentando, gerando criações cada vez mais singulares, impossíveis de serem categorizadas como isso ou aquilo que já ouvimos antes. Cada vez mais, um projeto solo como o Wings & Horns tende a criar seu próprio gênero para que expressar idéias e experiências próprias. Não querendo fazer o elogio da genericidade do termo "world music", então, mas o que ele de fato parece expressar é aquilo que não se identifica com nenhuma tradição musical específica do mundo, mas demonstra um trânsito livre por diversas dessas tradições.
Penso que talvez seja de fato o momento de ouvirmos mais o que tem cada músico a dizer sobre seu trabalho, e não tanto as reduções que a indústria tenta criar para encaixar CDs em prateleiras de lojas. Mas mais importante ainda, para além de descrições, acho importante ouvir àquilo que é dito pela música e que não poderia ser dito por nenhuma outra linguagem senão a música.
"Moongardener" está disponível no Spotify do Wings & Horns, junto também de outras faixas brilhantes do projeto:
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