Um estilo musical como o irlandês, que se comporta como tradição oral, passando de ouvido em ouvido, aprende-se, ora pois, ouvindo. Dentre os artistas que tocam o seu instrumento, ouça especialmente aqueles que você mais admira - e ouça também o cara que esse cara ouvia. Não é à toa que os estilos particularmente genuínos de flautistas contemporâneos como Brian Finnegan estejam notadamente temperando os desenvolvimentos artísticos de flautistas mais jovens. Mas quem foi que ele ouviu? De onde ele aprendeu o que sabe? A resposta é um dos maiores pilares da flauta irlandesa atual, que nenhum de nós flautistas (e mesmo não-flautistas) pode deixar de ouvir: o grande Matt Molloy.
Conta-se que uma vez um jovem Brian Finnegan, cheio de admiração por mestre Molloy, dedicou-se a tirar todas as tunes que seu ídolo tocava, e a estudar minuciosamente a sua técnica, antes de se apresentar em um festival de música. Após se apresentar, um dos avaliadores disse-lhe que o som estava bonito – mas que, claramente, aquele que estava tocando não era Brian Finnegan e, sim, Matt Molloy. Esse foi um dos conselhos mais importantes que Finnegan ouviu: toque como você mesmo. Lembrei-me desta anedota quando li, nas palavras do próprio Molloy, a sua impressão da música que toca: disse ele, em uma entrevista para o “The Guide To The Irish Flute”, que o estado máximo da arte da música irlandesa, pelo menos de acordo com a tradição, é tocar solo. Só o seu instrumento melódico, sem acompanhamento. Existem incontáveis tunes pelo mundo, e a arte está justamente em tornar cada tune sua, tocando aquela melodia do seu jeito – não do jeito que você ouviu alguém tocar, mas imprimindo a sua própria marca pessoal naquela tune. Se ficar bom, ruim ou indiferente, isso não importa: pelo menos é você.
Matt Molloy cresceu na região de North Roscommon - South Sligo, em um meio riquíssimo em fiddlers e flautistas tradicionais. Nos anos 50, a música tradicional irlandesa não era de longe tão popular quanto hoje, e mesmo numa região em que ela “fervilhava”, faziam-se sessions muito mais distantes umas das outras. Molloy conta que eram organizadas muito mais informalmente, uma vez por mês, ou a cada 15 dias, o que fazia delas eventos ainda mais especiais e imperdíveis para ele – não pude deixar de pensar em como as nossas sessions brasileiras começaram também bastante espalhadas no tempo e espaço, mas se concentram cada vez mais, quanto mais músicos jovens se aproximam delas e encontram lá esse momento especial. Mas, para se enfiar no meio de tantos flautistas talentosos que surgiam lá, era necessário ter algum tipo de personalidade marcante na sua música. Molloy começou a procurar tocar tunes que ninguém mais tocava na flauta: tunes de fiddle, acordeão, gaita. Há que se esclarecer que, na música irlandesa (assim como em outros estilos), existe de fato essa distinção – tunes feitas para um instrumento podem oferecer dificuldades a mais se tocadas em outro, que vão desde ornamentação e fraseado até “falta de espaço para respirar”. Aparentemente, antes de Molloy começar suas experimentações, adaptando e quase recriando tunes para a flauta, fazê-lo era de certa forma impensável. Mas esse algo incomum de repente virou moda: hoje há uma geração de flautistas que já nascem sabendo que isso é possível e estão fazendo isso e até mais. Na verdade, hoje dificilmente definimos uma tune como específica para um dado instrumento, e tampouco nos ocupamos dessa questão quando queremos tirá-la. Há muito do que hoje tomamos por “tradicional” e “padrão” que, na verdade, foi desenvolvimento de instrumentistas da segunda metade do século XX, como este de quem falamos aqui – inclusive no que diz respeito à própria “música tradicional”. Há quem diga que Matt Molloy foi quem, na sua época, fez a música irlandesa algo mais “cool” para a juventude, efetivamente popularizando-a e disseminando-a.
Isso certamente se relaciona com três das bandas que hoje consideramos “pioneiras” do que comumente entendemos por música tradicional irlandesa – as três integradas em algum momento por mestre Molloy: The Bothy Band e Planxty, com quem tocou na década de 1970, e então The Chieftains, a partir de 1979. Conforme nosso artigo sobre a Planxty já andou dizendo, eram bandas bastante ousadas para a época, que de fato amoleceram consideravelmente o velho molde de concreto onde a música tradicional andava semi-esquecida. Impulsionadas até pelo crescente sentimento de identidade nacional na Irlanda das décadas de 60-70, essas bandas introduziram novos instrumentos, novas possibilidades de expressão, novas formas de interpretar as tunes tradicionais, e popularizaram essa música amplamente dentro e fora da ilha esmeralda. Se os Chieftains são hoje considerados um bastião da Irish music, fundadora de muito da sua retórica, não diferente podemos pensar de Matt Molloy e sua flauta.
Apesar de ter o que chega a considerar uma Irish flute ideal, feita por Patrick Olwell (um dos mais talentosos e geniais flute makers do mundo), Molloy continua a insistir em tocar o seu instrumento favorito: uma “Pratten Aperfeiçoada” por Boosey, feita em 1861. É uma flauta exigente, ele diz, pesada e que demanda muito ar – mais difícil de se tocar, aliás, do que a Olwell. Mas ele parece ecoar um certo gosto por isso – algo que já li de outros flautistas, aliás, elogiosos dessa “resistência” aérea que a Irish flute oferece para quem toca. Outro flautista, o também poeta Ciaran Carson, escreve que a Irish flute “resiste ao ar de uma forma necessária” (“resists your breath in a necessary way” - extraído de “Last Night’s Fun: In And Out Of Time With Irish Music”). É quase como se essa estranha categoria de instrumentistas se deleitasse com o desafio da Irish flute, que não obstante recompensa com um som rico, cheio, profundo para além das expectativas. Molloy ficou conhecido por adaptar técnicas de gaita para a Irish flute e é, inclusive, notório por sua habilidade em pronunciar um ré baixo poderoso (o chamado hard D) – muito mais fácil de tocar com volume e presença na gaita do que numa flauta de madeira.
Um set de reels tocados pelos Chieftains e convidados.
Gravado no Matt Molloy's Pub.
Com 19 anos, Matt Molloy ganhou o All-Ireland Flute Championship. Sua carreira, desde então, foi povoada por três das bandas mais lendárias da música irlandesa que conhecemos, que por sua vez tocaram com alguns dos músicos mais lendários que já viveram (os Chieftains, por exemplo, chegaram a gravar e performar ao vivo com Sinéad O’Connor, Van Morrison, Mick Jagger, só para começo de conversa). Para além das bandas, ainda, Molloy colaborou também com nomes de peso como a Irish Chamber Orchestra, Paul Brady, Tommy Peoples, Micheál Ó Súilleabháin e Dónal Lunny. Ele construiu sua própria carreira solo com alguns álbuns incríveis que são arroz com feijão para todos que pretendem aprender a tocar a incrível Irish flute. Para os que pretendem aprender, sim – mas, em igual medida, para os que continuam aprendendo. Pois a música irlandesa não se pára de aprender. Nas palavras de Molloy, “quanto mais você pesquisa e entra na música, mais você se toca que você não sabe, eu acho. Enquanto você tiver algo para aprender, você vai continuar a melhorar. Do jeito que vejo, quando chegar o momento em que eu acho que estarei bom o suficiente, vou estar velho demais.”
É, como sempre repetimos aqui, sobre a música – e a música acima de tudo! Quando não está nos palcos ou estúdios, Matt Molloy está em seu pub: o estabelecimento que ele abriu e mantém na Bridge Street, em Westport, County Mayo. O Matt Molloy’s, como é chamado, não passa sem as suas Irish sessions regulares. Não são sessions feitas para turistas, como as que encontramos nos tipos do Temple Bar, no centro de Dublin. As sessions tradicionais, como as do Matt Molloy's, são lugares onde pessoas comuns entram, sentam-se, começam a tocar, e outras se juntam. O próprio Molloy pode ser encontrado lá, tocando junto, e nesse momento ele não é um Chieftain ou um pioneiro da Irish flute – ele é apenas mais um músico naquela mesa. A session, de fato, é um lugar de culto à música, e se por um lado isso significa que não há muito espaço para estrelismos, por outro também quer dizer que é um momento feito pelos músicos e para os músicos: é o momento em que eles estão de divertindo e conversando entre si com seus instrumentos. A música da session não tem, necessariamente, a função de entreter os frequentadores do pub – que, claro, muitas vezes estão lá para apreciar a música também, mas nem sempre. Me vem a lembrança de uma session menos turística em que estive em Dublin, anos atrás, em que por ocasião da temporada de férias um grupo de turistas entusiasmados encheram o pub e puseram-se a tagarelar com vozes poderosas sobre suas experiências e opiniões – até o momento em que um dos músicos levantou-se e disse em alto e bom tom para o grupo de turistas: “desculpe, estamos atrapalhando a conversa de vocês?” Lembrei-me disso quando li o próprio Molloy comentando que uma turba muito desordeira costuma ser um problema: “geralmente, quando tenho um grupo de golfistas que não estão muito interessados na música mas gostam da ambientação, eu peço educadamente que ocupem outra seção do pub.”
Session no Matt Molloy's Pub, em Westport, County Mayo, Irlanda.
Matt Molloy toca na session ao lado de seu filho Peter.
Fica a recomendação a todos os flautistas, whistlers e aspirantes – bem como a todos os que apreciam a boa música irlandesa tradicional.
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