Já com quase um ano de estrada, esta revista vem trazendo para você, querido leitor, desde informações básicas sobre os instrumentos e o jeito que a música tradicional irlandesa acontece, ritmos, acompanhamentos, um pouco de história (e estórias), lançamentos e artistas tanto do Brasil como mundo afora, se você quiser ver mais, dê uma vista d'olhos na nossa página do Acervo. Mas, nós d’O Pint Diário estávamos sentindo falta de uma coisa, falar das coisas que nós ouvimos, da música mesmo e como nós a degustamos.
Quem assistiu a última live, pode conhecer um pouco mais das nossas influências, tanto na cena trad como fora dela, afinal nem só de trad vive o sessioneiro, mas de toda a música salva no seu Spotify.
Lançamos assim uma nova série, que vai contar com um artigo por mês, na qual propomos um álbum para escuta e cada um dos quatro que aqui vos falam dá a sua opinião sobre o disco.
Hoje falaremos sobre “Molloy, Brady, Peoples”.
Álbum de 1978 e que como o nome já diz, traz Matt Molloy na flauta, Paul Brady no violão e voz e Tommy Peoples no fiddle.
G.L.
Já falamos sobre o Matt Molloy por aqui, mas Paul Brady e Tommy Peoples são novidades para quem não está um pouco mais aprofundado no universo Irish. Dinossauro é um bom adjetivo pra ambos os três.
O álbum tem faixas com todas as combinações possíveis entre os três, o que faz dele bastante diversificado e coeso, mesmo com uma formação pequena.
O fiddle e a flauta se fundem muito bem apesar dos estilos serem muito específicos e diferentes, o do Matt Molloy é muito fluido e super ornamentado, mas sem chamar atenção pros ornamentos em si, Já o do Tommy Peoples é marcado, ácido e com triplets crocantes, com muita influência escocesa, como é próprio de Donegal. Nada melhor do que balancear algo cremoso e aveludado com crocância e acidez.
Mas o que me chamou mais a atenção foi o Paul Brady. Ele é um cantor e compositor de canções renomado na Irlanda, mas neste álbum ele acompanha a maior parte do tempo, e faz isso incrivelmente bem!! Tem propostas rítmicas e harmônicas muito interessantes, criando variedade e com um discurso muito claro o tempo todo. Ele canta até quando acompanha. Mas como não podia deixar de ser, há uma faixa em que ele canta desacompanhado, como costuma acontecer por aqui, uma versão pungente de Shamrock Shore.
O álbum é uma jóia! Merece ser apreciado com atenção e harmoniza bem com uma Guinness bem tirada e propriamente descansada.
P. C.
Eu conhecia muito pouco sobre o Paul Brady quando a gente decidiu ouvir esse álbum. E acho que o que ficou mais forte foi que, ao ouvir a sonoridade dele no violão irlandês, eu jamais imaginava que o trabalho principal dele é com country music. Ele, definitivamente, conversa nas duas línguas muito bem.
Além disso, o álbum diz muito. Acho que aborda toda a complexa simplicidade da cultura irlandesa na qual não há essa grande preocupação com aquilo que é grandioso, no sentido de fazer uma enorme produção, mas se preocupa em mostrar o que é grandioso dentro de cada um. Com a expressão de cada músico.
M. M.
Quando o Gustavo propôs um álbum chamado “Molloy, Brady, Peoples” para ser o primeiro da série, já sabia que seria muito bom só pelos nomes mencionados no título. Só camisa 10 tocando! Matt Molloy - um dos maiores representantes da Irish Flute. Tommy Peoples - um outro gigante do fiddle de Donegal. E claro, no violão, o rei da canção Paul Brady… mas aí que foi a maior surpresa desse álbum, talvez não só para mim mas para nós quatro. Que o Paul Brady toca violão não é surpresa para ninguém, mas como sempre, relaciono ele direto com sua voz e suas canções, meio que deixando o violão em segundo plano. Eu nunca tinha me atentado de como ele conduz tão bem a harmonia em tunes, de jeitos bem inesperados e com muita firmeza. Além de tocar melodia incrivelmente bem com variações belíssimas, como na faixa “The Rainy Day/The Grand Canal”. O álbum é cheio de tunes bem tradicionais mas soa muito moderno ao mesmo tempo… E enquanto estávamos escutando, eu me questionei de quando era o álbum e vimos que foi lançado em 1978! Nada como um trio de músicos desses para fazer um álbum soar tão atemporal.
L. R.
Não é senão por alguma curiosa anedota do destino que hoje tendemos a explicar o grau de envolvimento que uma obra musical provoca em nós em termos da complicada elaboração de instrumentistas, instrumentos, artifícios tecnológicos e reviravoltas narrativas. O que muitas vezes coloca, na extremidade oposta desse espectro de envolvimento, uma variedade de produções estereotipadas de músicas tradicionais, folclóricas, etc. Tanto é que a imagem que mais facilmente se insinua quando falamos em música irlandesa envolvente e estimulante é a de espetáculos como o famoso Riverdance – em oposição, talvez, a uma dupla ou trio de instrumentistas acústicos tocando temas de uma maneira mais singela. Mas vou dizer para vocês, caros leitores d’O Pint Diário, que não há nada como uma pequena busca instruída pelas gravações dos músicos mais célebres para derrubar completamente esse preconceito, e talvez até fazer o querido Riverdance parecer de certa maneira vago nas suas intenções, se comparado ao sutil esplendor de possibilidades artísticas que algumas dessas gravações emanam.
“Molloy, Brady, Peoples” já no título deixa claro um intento direto-ao-ponto, simples, quiçá despretensioso, curto nas elucubrações tecnológicas, mas riquíssimo naquilo que traz. Que confia na fonte da criatividade para produzir tudo o que precisamos para nos encher de impulsos dançantes, sem a necessidade de grandes produções ou penduricalhos cosméticos. Pois apesar de despido de fantasias, o nome do álbum faz referência ao encontro de três dos mais incríveis instrumentistas da música tradicional irlandesa, que aqui trazem para mesa tudo o que conseguem produzir com seus belos instrumentos acústicos, que por sua vez servem apenas e tão somente ao craic – a diversão intrínseca de se fazer música. Demonstram, quero dizer, o quanto se pode alcançar com uma premissa simples e sincera. Confesso que por vezes me surpreendo quando me lembro que são apenas três músicos por trás deste álbum! Assim como a princípio me surpreendeu o fato de a quinta faixa ser uma canção em séan-nós – quero dizer, a capella, sem acompanhamento, ocupando quatro minutos de um breve álbum que fervilha de potencial com os nomes de peso que carrega. Da mesma forma, a última faixa é composta “apenas” de uma tune – e o que mais me intriga, meus amigos, não é a escolha feita pelos artistas, mas a minha surpresa com ela! Digo isso como forma de mostrar esse tipo de orgulho e confiança que é próprio da música irlandesa, em que, digamos “uma melodia diz muito”. O estilo, como sempre dizemos, gira em torno da melodia, isso é fato: mas divirto-me sendo constantemente pego pelo poder e respeito que orbita essa “uma melodia”. Não precisa de mais, está tudo aí! Claro que a maioria dos sets que ouvimos por aí, inclusive nesse álbum, é composto de duas, três ou mais tunes, e é claro que muitas bandas celebradíssimas produzem versões bem complicadas e cheias de protuberâncias criativas, mas é lembrando-nos dessa simplicidade primordial da “uma melodia” que entendemos onde está o valor de tudo isso. Tendo-se em mente o potencial dessa mais destilada forma de criatividade, o valor de tudo o que se produz a partir dela é igual. Me lembra de um belo poema de um sábio japonês que viveu na virada do século XVIII para o XIX:
“Na cena da primavera,
Nada é superior, nada inferior;
Galhos floridos crescem naturalmente,
Alguns curtos, alguns longos.”
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