Para entendermos bem o que é o violão na música irlandesa, primeiro é interessante pensarmos em uma informação importante: somos brasileiros. Eu sei que parece bem óbvio mas a nossa forma de “falar musiquês” tem diferenças importantes em relação à música irlandesa (assim como cada cultura tem sua própria forma particular de fazer música).
Em segundo lugar, é muito importante e interessante saber que a harmonia da música irlandesa só foi aparecer por volta de 1960. Ou seja, até este momento, o violão não fazia parte do universo musical dessa cultura. Não sei para você, mas para mim, isso foi chocante. E foi mais chocante ainda quando eu entendi que, por causa disso, não existe harmonia fixa para as tunes, portanto, cada harmonista toca a sua própria cadência (dentro de um bom respeito à tonalidade, ritmo e afinação).
Uma última consideração ainda é a de que a música irlandesa é toda construída em torno da gaita de fole irlandesa, também conhecida como Uilleann Pipes. O que isso significa na prática? A uilleann pipes é uma gaita afinada em ré maior e, por isso, ela permite tocar tunes em D, G, Bm e Em (e mais alguns modos gregos). Isso significa que os outros instrumentos também terão que fazer o mesmo para tocar junto. Eu gosto de dizer que a uilleann pipes é a filha mimada da música irlandesa (rs). Além disso, a gaita tem duas notas rés oitavadas que ressoam constantemente (falando de maneira generalizada pois eu não sou gaiteira) e por isso, o violão tem uma nota ré na primeira corda que fica soando quase sempre.
Ok, mas por que estou falando isso? Porque a afinação usada tradicionalmente na música irlandesa é em D (ré aberto ou ré sus4). E o motivo disso: se adaptar às melodias e aos instrumentos nessa afinação e contexto.
Então temos aí o nosso primeiro ponto: a afinação tradicional. Seu nome popular é DADGAD porque é o nome das cordas ditos da sexta para a primeira. Ou seja, temos corda 6 em ré, corda 5 em lá, 4 em ré, 3 em sol, 2 em lá e corda 1 em ré. Sendo que as duas últimas ficam soando quase o tempo todo, assim como soam os drones da gaita de fole.
Sobre a construção da harmonia, normalmente são usados acordes sem muitas dissonâncias. Isso porque as melodias, que são a base do estilo, não costumam sair dos limites da escala, então não tem muito espaço melódico para harmonias mais tortuosas. Não significa que o cromatismo seja proibido. Não é. Mas a harmonia mais simples faz um melhor casamento com a melodia, geralmente. Mas tudo vai do bom senso do harmonista. Já vi e já fiz dissonâncias que ficaram ótimas (e o contrário também rs).
Outro ponto legal é, se você não memorizou as funções tônica (I), subdominante (IV) e dominante (V), terá uma excelente oportunidade agora, pois, geralmente, as tunes estão em cima dessa estrutura e das substituições diatônicas (acordes que substituem a harmonia e que estão dentro do campo harmônico). Eu gosto de pensar que é o melhor estilo musical para começar a estudar campo harmônico.
Apesar de amar esta afinação e identificar-me demais com ela, não vou falar sobre os shapes (formas de acorde) para não me estender muito porque o mais importante, aquilo que vai caracterizar o estilo, não está na mão esquerda, mas sim, na mão direita, no ritmo do acompanhamento.
Isso significa que, se eu tocar em outra afinação, mas com o ritmo certo, estarei dentro da linguagem tradicional? Sim!
Mas é nesse ponto que a treta começa.
Nos estilos musicais que estudei, choro, samba, música erudita, existem os instrumentos da “cozinha” (harmonia e ritmo) que acompanham os melódicos mantendo uma base bem firme. O pandeiro, por exemplo, acompanha o choro mantendo um compasso binário em semicolcheias (generalizando MUITO). Na música irlandesa, se um pandeiro fosse fazer o acompanhamento, ele teria que tocar a rítmica da melodia juntinho com ela. Um acompanhamento paralelo, pode-se dizer. Quando a melodia acentua, o pandeiro acentuaria junto e não mais manteria uma base para o solo. Assim é com o violão na música irlandesa. A mão direita vai acompanhar cada notinha da melodia fazendo quase uma “perseguição musical” acompanhando cada acento, cada pausa, cada prolongamento e fazendo um diálogo com isso tudo. Mesmo que o encadeamento dos acordes esteja incrível, se a rítmica não for feita desta maneira, o violão estará descaracterizado.
Eu chamo isso de “conversar com a melodia” pois, ao criar este paralelismo com ela, o violão está como se concordando com aquilo que é falado. Em outras palavras, ele precisa entender como ela está se desenvolvendo e fazer um caminho harmônico que a ofereça suporte. Eu gosto de pensar que, se a melodia fosse um corpo, o violão (ou a harmonia) seria a roupa que este corpo veste.
Para fechar com chave de ouro quero indicar uma sequência de três vídeos em que, no primeiro, Mike McGoldrick (na low whistle) toca duas tunes com Tim Edey (no violão). As tunes são Mist on the Mountains, um jig tradicional irlandês, seguido de The Bass Rock, um reel de composição do McGoldrick. Maravilhosamente tocados, por sinal.
No segundo vídeo, que é do canal do youtube The Whistler, temos também duas tunes, sendo a primeira, a mesma Mist on the Mountain Jig mas acompanhada por Juanjo Monserrat no violão. Ambas tocadas por dois ótimos violonistas e, não por acaso, com harmonias muito distintas.
E o terceiro vídeo que é retirado do álbum “Tunes” da respeitada fiddler e acordeonista Sharon Shannon, é composto por dois reels sendo o primeiro, The Bass Rock, a composição do McGoldrick porém tocada no violão por Jim Murray. Absolutamente linda e diferente. A segunda tune deste mesmo vídeo é Road to Errogie, que é uma composição de Adam Sutherland, fiddler e compositor escocês.
Resumindo: Tim Edey (Mist on the Mountains jig/ The Bass Rock), Juanjo Monserrat (Mist on the Mountains jig) e Jim Murray (The Bass Rock): ambos tocando violão em músicas tradicionais irlandesas mas com linhas de acompanhamento bem distintas.
Espero que gostem e até a próxima!
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