A expressividade e ornamentação da música irlandesa estão entre os elementos que a fazem tão particular, e muitas vezes difícil de dominarmos. É uma coisa aprendermos uma língua – agora navegar os sotaques dela pode ser uma questão bem mais complexa. Pois ocorre que, justamente na música irlandesa, esse sotaque é onde uma parte significativa da diversão pode acontecer. É com o uso da ornamentação e de variações no fraseado (dentro, claro, da gramática da música irlandesa) que os músicos mais experientes são capazes de repetir várias vezes uma mesma tune sem jamais tocá-la duas vezes da mesma forma. É, de fato, onde reside aquele tempero inesperado no que se ouve.
Vale lembrar que a música irlandesa não costuma ser aprendida por métodos e livros. Na verdade, o aprendizado por métodos didáticos, passo-a-passos, livros e tudo o mais são até um tanto alienígenas à tradição irlandesa - que, por sua vez, prefere uma abordagem de aprendizado por imitação e repetição. Repetição daquilo que se ouve, e, portanto, pressupondo também que se experiencie bastante a música e as suas várias maneiras de se manifestar. Cada músico se expressa de uma forma particular com a linguagem irlandesa, que por sua vez tem seus "estilos" ou "sotaques" mais próprios de cada região do país.
E então, em cima do que se ouviu, pratica-se. Aprendemos primeiro os sons de uma língua e, com a prática e um conhecimento cada vez mais íntimo das suas possibilidades, podemos fazer poesia com ela.
No vídeo abaixo, desenvolvo mais a fundo este tema, demonstro alguns ornamentos básicos na Irish flute (que também servem à tin whistle) - e mostro como podemos treinar a natureza percussiva da ornamentação irlandesa contemplando o estalar de uma toalha de banho:
Outros instrumentos têm, cada um, seu próprio espectro de possibilidades expressivas que, naturalmente, continuaremos a cobrir n'O Pint Diário. O nosso colaborador Sandro Bueno, por exemplo, faz um interessante intercâmbio de ornamentação entre a música irlandesa na tin whistle e a música galega na gaita de foles. Em seu canal do YouTube, ele também oferece uma explicação fantástica sobre esses ornamentos - inclusive com uma corretude impecável com as denominações que, sinto, escapou-me aqui e ali no meu próprio vídeo!
Sendo um estilo musical popular, transmitido numa tradição essencialmente oral, é mais do que recomendado buscar pessoas diferentes explicando os mesmos conceitos para entendê-los melhor. Não diferente, aliás, de como aprendemos as próprias tunes: vale à pena ouvir a mesma tune tocada por músicos diferentes, para que possamos compreender melhor as suas dimensões e potencialidades expressivas! Em sua poética coletânea de crônicas sobre música tradicional irlandesa, o livro "Last Night's Fun", o escritor irlandês Ciaran Carson pondera um fenômeno curioso que, tenho certeza, já chamou a atenção do ouvinte atento: ele diz que certas tunes parecem passar de mão em mão longa e sucessivamente até encontrarem um músico que as compreende de uma forma especial, e faz surgir delas um sentido especialmente poético. Mas estou me desviando do assunto.
Com vocês, mestre Sandro Bueno!
Magnífica aula sobre música irlandesa, sobre suas características, sobre sua execução! Parabéns, Leonardo!