Uma das coisas que nós humanos fazemos muito bem é dar nome aos bois, outra coisa que fazemos até melhor é confundir os bois, ou seja, chamar alhos de bugalhos.
Apesar das palavras em questão terem origens parecidas e tratarem de assuntos que se cruzam em muitos pontos, existe alguma especificidade nelas e acho que vale a pena separar. Vou tentar fazer isso sem ficar chato, mas vou precisar de um pouco de história para me ajudar.
Primeiro de tudo, o foco aqui é falar de música, apesar desses termos se referirem a muitas coisas.
Vou começar com o mais amplo, e julgo, o mais fácil. Popular.
Para a música, quando dizemos popular, estamos chamando quase toda a música que não seja erudita ou clássica. Tá, posso chamar o Planxty, o Terra Celta, o Sting, o Deep Purple, o Tom Jobim, a Lady Gaga e o Zeca Pagodinho de Música Popular.
Mas e Padraig O’Keefe? (Um fiddler das antigas, muito antigas. Eventualmente vamos falar mais dele por aqui) Ele não.
Uma coisa que define a Música Popular é o fato dela ser feita para muita gente ouvir, ou seja, é a música do povão, das massas. Não quero que ninguém se ofenda aqui, um dos passatempos do meu grupo de amigos na escola era parecer o mais diferentão e menos massificado o possível, mas invariavelmente com música popular. Ai a adolescência…
O que o tio Padraig tocava era o quê? Música tradicional.
Tradicional quer dizer que atravessa gerações, passado de forma oral, mas ao mesmo tempo existe um aspecto de vivo nisso. Quem conta um conto aumenta um ponto.
Ele mesmo foi professor de muita gente, escreveu muita música, e fazia muita coisa do jeito dele, ele tinha um estilo próprio. Ou seja, ele estava inventando a tradição. Mas não deixou de ser tradicional. Estava inserido no que já era feito, era aceito pelas pessoas, servia o seu propósito e não rompeu com nada do que já estava estabelecido.
Ué, mas o Planxty também é tradicional... Sim! Eles, e muito mais gente, conseguem trazer a música da session (tradicional) para o rádio e do rádio de volta para a session, e assim, num passe de mágica, uma coisa vira a outra sem deixar de ser a primeira. Fazem parte dessa invenção da tradição.
Mas, pode-se perguntar, música tradicional e música folclórica não são a mesma coisa?
Hum, sim e não. Folclore é uma palavra bem gasta e cheia de problemas.
Ela quer dizer “conhecimento do povo'' e trata justamente da cultura popular tradicional. Sabe os irmãos Grimm, das histórias que depois viraram filmes da Disney com fins açucarados? Eles estão entre os primeiros a usar esse nome. Até aqui, nenhum problema.
À partir do século XVIII foram sendo feitos estudos e coletas de saberes tradicionais, que acabaram cristalizados, pararam no tempo e perderam aquela coisa viva que tinham por serem tradicionais. É a tradição empalhada no museu. Já deu pra sacar que isso começa a ser problema…
Genuíno, autêntico, puro, típico, “O verdadeiro” e até autóctone, são palavras que vêm dessa ideia de cristalização e que trazem um cheiro de mofo que é difícil de tirar.
Além disso, o folclore foi usado politicamente para fomentar o patriotismo nacionalista em épocas e governos que eu preferia que não tivessem acontecido. E ainda se nota resquícios dessas épocas.
Basta fazermos aqui um teste para vocês entenderem a diferença.
Sabe o conto do saci-pererê? Onde você ouviu essa história?
Acho que a maioria vai responder que foi na escola. Isso quer dizer que é folclore. Se a maioria tivesse respondido que quem falou pra ter cuidado com ele e contou a história foi o avô, a mãe ou o velhinho que ficava na varanda da casa dele e que você dava bom dia sempre que passava por ele vindo da escola, ou até por eles todos, mas com variações, aí era tradicional.
O Planxty é folclórico? não. O tio Padraig? Sim, uma vez que ele escreveu o que fez, foi gravado, e tem a sua música de certa forma cristalizada.
E o Folk, não é só um diminutivo de folclore em inglês?
Sim.
E não! Me desculpem.
Neste caso, Folk é uma classificação da indústria fonográfica, como rock, soul, pop, metal, world music (que raio seria isso?!); e que diz respeito primeiramente a um gênero de Música Popular que nasceu nos anos 60, especialmente nos Estados Unidos mas também no Reino Unido e Canadá, a partir do contato dos músicos com recolhas feitas por folcloristas, num movimento chamado Folk Revival. O que esses músicos fizeram foi escrever canções novas e fazer releituras, ou seja, podiam estar mais ou menos inseridos nas tradições.
Um dos expoentes máximos desse gênero é ninguém menos que Bob Dylan. Mas eu prefiro a Joni Mitchell...
Portanto o Folk não é folclórico nem propriamente tradicional, mas é inegavelmente popular.
Curiosamente, estava acontecendo na Irlanda na mesma época (60s-70s) um movimento de "reavivamento" muito parecido. Foi nessa época que o que acontecia só dentro dos pubs e das cozinhas de casa foi primeiro para o palco e depois para o rádio, com o surgimento de muitas bandas que a gente gosta à beça, e olha só quem está nesse meio: o Planxty!
Definitivamente dá pra chamar o Planxty de Folk, eles têm os ingredientes todos da receita: época, anglofonia, relação popular-tradicional, composições originais e releituras e o Bob Dylan na orelha. (não posso acreditar que eles não ouvissem Folk Americano)
Hoje em dia o termo Folk é usado também de forma mais elástica, não necessariamente ligado a esses aspectos ou ao movimento do Folk Revival, especialmente quando se misturam gêneros e dá aquela coceirinha de querer rotular de alguma forma. Alguns exemplos seriam: Folk Metal, Indie Folk, Neofolk, Filk, Pagan Folk, Freak Folk, Folk Punk, Folkatronica e até Anti-folk. Dá pra ver que essa palavra abrange quase os confins do universo e já não quer dizer muito.
Uma provocação: O que seria Folk brasileiro? dá pra imaginar? Comenta se tiver alguma idéia.
Pra finalizar, vamos comparar definições:
O folclórico e tradicional, mas não popular, Padraig O’Keefe também não é Folk,
Planxty é Folk, popular e tradicional, sem ser folclórico.
Lunasa, é tradicional e popular, mas não é nem Folk e nem folclórico
E o Martin Hayes é tradicional, mas em alguns trabalhos já não se encaixa em mais nada do que andamos a discutir aqui, mas esse assunto fica para outro momento.