Uma pergunta que pode surgir é a seguinte: Se o bodhrán era rejeitado, ele já existia e já fazia parte da cultura irlandesa de alguma forma, de onde ele vem e como integrava essa cultura, mesmo que à margem?
Lá vamos nós, por partes.
Primeiro, ninguém sabe ao certo como ele surgiu, mas existem teorias e eu já apontei uma delas no primeiro artigo sobre o bodhrán - uma peneira. É realmente muito fácil transformar qualquer coisa em instrumento musical, quem imaginaria esticar uma tripa enrolada em cima de um caixote de madeira e friccionar com crina de cavalo embebida em resina de árvore presa em um graveto… Desculpem, o assunto é o bodhrán e não o violino…
Mas essa transformação de uma peneira em tambor pode ter acontecido em qualquer lugar do mundo e ter sido levada de lá pra cá, ou ter surgido em vários lugares mais ou menos ao mesmo tempo. O mais provável é ter chegado na Irlanda (no caso de não ter surgido lá mesmo) com os romanos quando eles chegaram lá ou com os árabes/mouros que chegaram na península ibérica (Portugal e Espanha) e depois fizeram muito comércio com os irlandeses.
Vai saber desde quando ele está entre os irlandeses e quando resolveram começar a usar a técnica que faz dele único, o que há de mais antigo são citações medievais (que usam a palavra bodhrán mas não se sabe muito bem de que tambor estão falando) e uma pintura do século XIX onde o bodhrán aparece no cantinho acompanhando uma farra na noite de Halloween. Quero ver quem consegue encontrar o menino!
Segundo, muito se conjectura sobre os usos do bodhrán na cultura irlandesa, entre guerras e ritos, tocar na session com certeza não era um deles. Antes das ideias Sean O’Riada (de quem eu vou falar melhor futuramente) o bodhrán fazia (e ainda faz) parte dos festejos do dia de Santo Estêvão, no dia 26 de Dezembro, ou, o dia depois do Natal.
Imaginem o Halloween misturado com a Folia de Reis ou a Festa do Divino. Aliás, isso tudo é muito parecido.
Nesse dia acontece o chamado Wren Hunting, a caça de um pássaro, o "Wren" ou "Carriça" em português, o Rei de Todos os Pássaros! Mas na verdade não é pela caça em si, tanto que hoje em dia o pobre pássaro não é mais caçado, usam um de mentira. O que interessa é o seguinte, colocam o pássaro em cima de um mastro enfeitado com fitas coloridas e, em grupo, todos fantasiados com palha, fitas coloridas, máscaras ou a cara pintada, andam de casa em casa cantando e tocando (tá aí o nosso amado bodhrán!) e pedindo dinheiro para um suposto “enterro do wren”, ou seja, ir tocar mais ainda, festejar e beber no pub. Mas também há quem use o dinheiro para a caridade. Parece que já vimos histórias parecidas, não?
Claro que o cancioneiro irlandês contempla não só canções sobre o folguedo ou os Wren Boys mas também fazem parte da própria festa.
The wren, the wren, the king of all birds,
St. Stephen's Day was caught in the furze,
Although he was little his honour was great,
Jump up me lads and give him a treat.
A Carriça, a Carriça, o Rei de todos os pássaros
No dia de S. Estêvão foi pego no tojo
Mesmo sendo pequeno tinha grande reputação
Corram meus rapazes para dar-lhe um presente
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