Acredito que uma das coisas que mais me encantam e sempre me puxaram a atenção para a música tradicional irlandesa é o fato de que é uma música viva. Viva no sentido de que não se estagnou de uma só forma e ainda está em constante transformação, e claro que isso não é exclusividade da música irlandesa, mas sim da música tradicional em geral, de diferentes lugares do mundo e culturas distintas. Até temos uma matéria muito interessante sobre a diferença de música tradicional, música folclórica e música popular, se você quiser se aprofundar e filosofar um pouco mais sobre isso. E a banda de hoje carrega a palavra tradicional no seu estado mais fresco, genuíno e atualizado (na minha humilde opinião).
Foi o Gustavo Lobão que me apresentou o The Gloaming pela primeira vez e na época já seguíamos e éramos fãs de alguns integrantes da banda, principalmente após assistir à algumas aulas e shows de Martin Hayes e Dennis Cahill em Limerick. Nunca vou esquecer a primeira vez que escutei o som da banda e pensei - “mas o que é isso? Como é possível tirar, ou melhor, pensar nesse som e nestes arranjos? Pode isso, produção?”
A banda começou com iniciativa do grande fiddler Martin Hayes, que tem uma longa trajetória e uma história muito interessante (na qual ainda teremos uma matéria logo mais!). Ele e o violonista Dennis Cahill já são amigos e parceiros musicais de longa data e têm alguns álbuns gravados e longas turnês juntos pelo mundo. O som da dupla já era muito diferenciado, com um quê minimalista e uma sutileza ímpar nas harmonias e nas melodias das tunes. Junto a eles, The Gloaming tem Íarla Ó’Lionáird nos vocais, Caoimhín Ó Raghallaigh no hardanger fiddle e Thomas Bartlett no piano. A formação não é nada tradicional. Dois fiddles, um piano junto com um violão e um vocal. Normalmente essa forma seria uma receita para sons embolados, principalmente com duas harmonias (que no modo tradicional seriam bem ritmadas e livres para variações). Mas quando Martin Hayes pensou em formar a banda, ele não pensou na formação dos instrumentos, e sim nos músicos que ele gostaria de juntar e fazer aquela música acontecer, por suas individualidades e diferentes bagagens musicais.
Uma curiosidade! - o jovem pianista Thomas Bartlett, que é norte-americano, não conhece quase nada sobre música tradicional irlandesa. Ele diz que nunca foi uma fonte de pesquisa e mal consegue entender as formas e ritmos estabelecidos. Porém, quando era apenas um menino fez uma viagem com seus pais para a Irlanda e assistiu à um show do Martin Hayes em Dublin e ficou encantado de uma maneira que convenceu os pais a seguir o músico todos os dias em sua turnê pela Irlanda. Martin notou que havia uma família e um menino que não piscava os olhos em praticamente todos os shows daquela semana e resolveu falar com eles. Anos depois, Martin foi fazer uma turnê pelos EUA e reencontrou Thomas, e descobriu que aquele mesmo menino pré-adolescente de anos atrás na Irlanda, tinha sido por acaso o promotor do show que ele tinha acabado de fazer naquela noite. Assim mantiveram contato e começaram a tocar juntos, e hoje Thomas é um dos responsáveis pela autenticidade da banda. Ele até diz que o fato de não ter vindo da cena tradicional faz com que ele tenha uma visão totalmente diferente e distorcida das tunes e que justamente essa é sua função na banda.
O violonista Dennis Cahill também traz um pouco dessa visão, já que também é americano e tem outras influências além do trad, mas que já tem um entendimento maior das estruturas e das tunes por tocar a mais tempo.
Já o vocalista Íarla Ó Lionáird vem de uma família tradicional de Cork, sempre teve a música enraizada e canta desde criança. Hoje é um dos mais conhecidos cantores de séan-nós, ao mesmo tempo que, assim como Martin Hayes, sempre teve vontade de explorar novos modos de fazer música tradicional, mesmo vindo de uma cultura extremamente “quadrada”.
Por último, Caoimhín Ó’Raghallaigh veio para dar aquela “liga” final. A “cereja do bolo”. Qualquer um pensaria que uma banda que já tem um fiddler, especialmente como o grande Martin Hayes, não precisaria de um segundo fiddle, ainda mais sendo uma banda moderna e não uma ceíli band. Martin tocando sozinho em um palco já detona tudo e com certeza não precisaria de um apoio. Mas como o próprio Martin diz - “eu procuro o músico no qual eu quero tocar, e não o instrumento”, Caoimhín foi convidado a ser membro da banda e é visível que os dois têm funções e ideias muito diferentes. Além de Caoimhín tocar um tipo de fiddle diferente, ele faz vários contrapontos enquanto Martin está levando a melodia principal. Tenho a impressão de que os dois enxergam as tunes muito além de frases e formas, com uma certa nostalgia e uma verdade muito grande em cada nota tocada.
Ao meu ver, estes músicos trouxeram algo inovador e extremamente único. É um tipo de som que você tem que estar disposto a escutar, obviamente. Não é necessariamente dançante ou algo para se escutar no som do celular ou em uma caixinha de som vagabunda. É preciso tempo, respirar junto com a música, se deixar levar e sentir cada nota, assim como os integrantes da banda estão fazendo. É uma música para poucos e para todos ao mesmo tempo, de uma simplicidade e complexidade que eu ainda não tinha visto em nenhum outro lugar. Te convido com a maior sinceridade a conhecer, escutar e assistir aos vídeos destes músicos magníficos.
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